Elieni Caputo - Laço de fita

Literatura brasileira ocntemporânea
Elieni Caputo - Laço de fita - Editora Quixote, Selo Dulcineia - Capa, projeto gráfico e diagramação: Dúnya Azevedo - Lançamento: 2022.

Em Laço de fita, a psicóloga, poeta e escritora Elieni Caputo desenvolve um raro e corajoso exercício de ficcionalização ao utilizar como matéria-prima para o romance os fatos que levaram ao seu surto psicótico, as relações com os familiares, os delírios e as internações. Os fragmentos documentais de todo o processo estão entremeados ao longo do texto: cartas de advertência do condomínio onde morava, suas fotografias da época, laudos médicos e um relato da própria mãe para o médico, uma técnica de colagem que reforça a intensidade do caráter realista da obra. Um desses fragmentos, ironia maior, é o anúncio de uma palestra da autora, antes de ser internada e levada à força do hospital onde trabalhava, justamente sobre o tema da reforma psiquiátrica e luta antimanicomial. 

Uma obra complexa que pode ser avaliada em diferentes camadas porque é, ao mesmo tempo, um romance que lida com a autoficção e também um ensaio sobre o tratamento psiquiátrico na atualidade. De um lado, a influência da indústria farmacêutica que possibilita o consumo generalizado de antidepressivos e ansiolíticos e, no outro extremo, a crueldade da internação involuntária e o tratamento nos hospitais psiquiátricos, verdadeiros presídios nos quais não há esperança de "cura". A autora-narradora descreve o dia da condução coercitiva: "Despejaram a encomenda biológica cheia de hematomas nos braços, a encomenda roxa com laços, a encomenda viva. Descarregaram numa clínica particular porque acreditavam, até então, que a encomenda tava com plano de saúde."

"O caso é que eu tinha me separado de tudo, de todos, o último vínculo com o mundo, o trabalho de psicóloga no hospital, no setor de doenças infecciosas. [...] Fui morar sozinha em uma quitinete de 10 m² que, em pouco tempo, se converteu em panela de pressão. [...] Eu tinha me separado de todos, mas errei no ponto crucial. [...] Mulher sozinha, esquisita e bonita sempre é mal vista, sabe? Geral se prepara pra dar o bote. Vacilou, já era. E eu dei bobeira, demais. Endoidar muita gente endoida. Se você é milionário, vira uma coisa excêntrica, exótica – às vezes te internam se encher o saco demais. Se for preto e pobre, toma porrada da polícia, vai parar na cadeia, num manicômio judiciário, vira mendigo, andarilho, toma tiro. [...] Eu era aquele meio termo indefinido, nem cá nem lá, nem uma coisa nem outra. Classe média. Então acharam um equilíbrio razoável: a internação na marra, à força." (p. 15)

É preciso cuidado com a tirania psiquiátrica que tende a suprimir formas de pensar que não se adaptem ao consenso sobre o que é admitido como racional. Se ficarmos no campo da arte, bem poderíamos ter internado a maioria dos artistas que fizeram parte do movimento surrealista na Paris dos anos 1930: Tristan Tzara, Paul Éluard, André Breton, Hans Arp, Salvador Dalí, Yves Tanguy, Max Ernst, René Crevel e Man Ray, devemos muito a este bando de "loucos" nos campos da literatura, pintura e fotografia. De fato, na origem do movimento, como destacado no prefácio de Nadiá Paulo Ferreira, está a declaração de André Breton no Manifesto Surrealista de 1924: "Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade (o que se vê de sua liberdade) não poderia ser ameaçada."

"A psiquiatria agora adquire contornos sem precedentes com o inchaço cada vez maior dos manuais de transtornos mentais, onde se inserem doenças capazes de abranger todos os indivíduos e transformá-los em consumidores potenciais de psicotrópicos. De forma que a outrora minoria dos doentes mentais agora é quase toda a sociedade nesse sentido de venda e consumo. E quem não consumir daqui em diante algum antidepressivo, ansiolítico e tal, será suspeito para o sistema. [...] É, eu não fui a consumidora ideal desses suprimentos, então foram necessários procedimentos mais invasivos, o manicômio. [...] Você que lute pra não ir parar no manicômio, tá? Porque eu fui parar no hospício, no cárcere psiquiátrico. Os psiquiatras são uma polícia bem mais injusta que as instituídas civil e militar, asseguro. Louco não tem direito de impetrar habeas corpus." (pp. 21-2)

Eliene Caputo envolve seus algozes e os leitores nesse nó da loucura, chegando à curiosa conclusão de que a indústria farmacêutica e os manuais de psiquiatria aumentaram tanto o número de transtornos que logo irão desconfiar das pessoas que não se encaixem em nenhuma das categorias: "Não é normal não ter nenhum transtorno. Vai ser subversivo isso, será perseguido." Um livro que é também uma espécie de distopia, só que com o agravante de, infelizmente, representar a realidade de muitos pacientes que são levados à força para um manicômio, hospício ou cárcere psiquiátrico. Afinal, "Louco não tem direito de impetrar habeas corpus".

"Eu tive certa sorte, mas a chance de ter ficado internada anos e anos ou de virar um robô era grande, é isso que acontece com muita gente, com a maioria. Se eu não tivesse voltado à tal normalidade, ou se voltasse com atraso, de modo que me tornasse indiscernível de outros loucos, ia ficar lá na clínica por alguns anos e depois virar um boneco, um vegetal. Atualmente nçao se dá na maior parte dos casos a internação durante a vida toda porque com a tal da reforma psiquiátrica o sistema não comporta mais isso. Eu ia ser domada de forma adequada, aposentada, de modo que o custo/benefício de ficar comigo valesse a pena, uma bolsa-louca. [...] A libertação dos loucos se deu com base numa relação custo/benefício, só isso. Tratamento aberto com louco dopado dá menos despesa, menos trabalho, são como os cachorros que de tanto levar choque em experimentos nem percebem quando há a possibilidade real de escape. Desistem, tornam-se inofensivos, custam mais barato, o desamparo aprendido." (p. 82)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre a autora: Elieni Caputo nasceu em 1981 e reside em São Paulo, capital. Graduada em Psicologia pela UFSCar e em Letras pela PUC-SP, é doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP, membro do GENAM – Grupo de Estudos e Pesquisa em Literatura, Narrativa e Medicina. Autora dos livros de poesias: “Violência e brevidade” (Penalux, 2020), “Casa de barro” (Patuá, 2018) e “Poema em pó” (7Letras, 2006). Alguns de seus poemas foram premiados em concursos literários no Brasil e em Portugal, como “Despedida”, vencedor do 1º Prêmio no Concurso de Poesia da Biblioteca de Condeixa – Portugal.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Laço de fita de Elieni Caputo

Comentários

Neuza Dias Giacometti disse…
Obrigada Alexandre Kovacs pela pesquisa de autores e disprendimento em dedicação aos seus leitores
Alexandre Kovacs disse…
Oi Neuza, eu é que agradeço a sua visita e comentário. Grande abraço!

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