Han Kang - Sem despedidas
O lançamento mais recente da sul-coreana Han Kang, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2024, é um romance ainda mais complexo e desafiador do que o seu anterior A vegetariana. Uma obra difícil de ler e ainda mais difícil de resenhar, na qual a autora confunde os limites entre sonho e realidade, passado e presente, vida e morte, ao explorar as dualidades da natureza humana. Fiel à tendência de suas obras anteriores, Han Kang incorpora à narrativa episódios marcantes da história recente da Coreia do Sul. Após o final da Segunda Guerra Mundial, a península coreana foi dividido pela metade pelos Estados Unidos e então União Soviética, criando assim a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, divisão que originaria a Guerra da Coreia em 1950. Antes desse conflito, entre 1948 e 1949, a ilha vulcânica de Jeju foi palco de um massacre brutal, no qual milhares de cidadãos foram aniquilados pelo governo em um episódio pouco conhecido no Ocidente.
Logo na abertura do romance, Han Kang nos confronta com a imagem perturbadora de um pesadelo: milhares de troncos negros de árvores, assemelhando-se a corpos humanos, revelam-se lápides de um cemitério prestes a ser arrastado pelo mar. A protagonista-narradora, Kyung-ha, também uma escritora, confessa não entender se o pesadelo é uma referência a um massacre sobre o qual ela acabou de escrever ou um presságio: "Aquela foi a primeira vez que pensei que talvez o mar azul-escuro que avançava para levar os ossos sob os túmulos em forma de monte não tivesse a ver com as pessoas massacradas e a época que se seguiu. Talvez fosse apenas uma profecia pessoal. Talvez aquele lugar de sepulturas inundadas e lápides silenciosas estivesse me falando sobre o futuro da minha vida. Ou seja, minha vida de agora."
"Minha mãe me contou que, quando era nova, militares e policiais mataram todos da sua vila; só escaparam minha mãe, naquela época no último ano do primeiro ciclo do ensino fundamental, e minha tia, com dezessete anos, pois tinham ido visitar um primo de segundo grau por parte do pai. No dia seguinte, ao ouvirem a notícia, as duas irmãs voltaram para a vila e ficaram a tarde inteira vagando pelo pátio da escola de ensino fundamental, tentando encontrar o corpo do pai, da mãe, do irmão mais velho e da irmã mais nova, de oito anos. Elas verificaram as pessoas caídas e amontoadas por toda parte, cada rosto coberto por uma fina camada do gelo que caía desde a noite anterior. Não conseguiam reconhecer os rostos por causa da neve, então, não suportando usar as mãos, minha tia usou um lenço de bolso para limpar cada um deles. Minha tia disse à minha mãe: 'Vou limpar e você olha direito'. Ela não teria deixado a irmãzinha tocar no rosto dos mortos, mas as palavras 'olhar direito' estranhamente causaram medo na minha mãe, que agarrou as pontas das mangas da minha tia, fechou bem os olhos e andou como se estivesse pendurada na irmã. Toda vez que minha tia dizia 'olhe lá olhe direito e me fale', minha mãe abria os olhos contra a própria vontade. Ela me disse que naquele dia aprendeu algo com toda clareza. Quando uma pessoa morre, seu corpo fica gelado. A neve se acumula nas bochechas expostas e uma camada fina de gelo ensanguentado bloqueia a pele dela." (p. 71)
A trama tem início quando Kyung-ha recebe um pedido inesperado de sua velha amiga, Inseon, uma cineasta que abandonou a agitada vida na capital Seul para dedicar-se à marcenaria e cuidar da mãe na ilha de Jeju. Após um acidente, Inseon, agora hospitalizada, pede a Kyung-ha que viaje imediatamente até Jeju para alimentar seu pássaro, que ficou sem assistência. No entanto, ao desembarcar, Kyung-ha se depara com uma severa tempestade de neve, colocando não apenas sua missão, mas também sua própria vida em risco. Depois de muitas dificuldades, ao chegar na casa de Inseon, estabelece-se uma realidade paralela na qual a prosa poética da autora revisita por meio de diferentes vozes narrativas o passado da família de sua amiga e o massacre ocorrido na ilha.
"Não é coincidência o fato de que naquele inverno trinta mil pessoas tenham sido massacradas nesta ilha, e no verão do ano seguinte mais duzentas mil na península. Houve um comando do exército americano para impedir a propagação de simpatizantes do comunismo, mesmo que fosse necessário matar todas as trezentas mil pessoas que moravam na ilha. Membros da Liga da Juventude do Noroeste, jovens de origem norte-coreana com ideais de extrema direita, estavam repletos de rancor e vontade de realizar esse plano. Então, depois de duas semanas de treinamento, entraram na ilha vestidos com uniformes da polícia e do Exército. A costa foi bloqueada e a imprensa controlada. A insanidade de apontar uma arma para a cabeça de um recém-nascido era algo permitido, ou melhor, recompensado; assim, mil e quinhentas crianças menores de dez anos foram mortas. Antes mesmo que o sangue derramado durante esse precedente secasse, a Guerra da Coreia estourou. Duzentas mil pessoas de todas as cidades e vilas do país, incluindo as da ilha, foram selecionadas, transportadas de caminhão, encarceradas, fuziladas e enterradas escondido, e ninguém foi autorizado a recuperar os restos mortais. Pois a guerra não havia chegado ao fim, era apenas um armistício. Porque o inimigo ainda estava além da linha de demarcação militar. As famílias estigmatizadas das vítimas e também as outras pessoas que seriam tachadas como defensoras do inimigo no momento em que abrissem a boca permaneceram em silêncio. Passaram-se dezenas de anos até que os montes de bolinhas de gude e os pequenos crânios perfurados fossem escavados nos vales, na mina e na pista de decolagem, e ainda há ossos misturados entre si enterrados. / Aquelas crianças. / Crianças mortas em prol de um extermínio." (pp. 262-3)
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