Haruki Murakami - Sono
Haruki Murakami - Sono - 120 páginas - Editora Objetiva, Selo Alfaguara - Tradução direta do japonês por Lica Hashimoto - Ilustrações de Kat Menschik - Lançamento no Brasil: 01/03/2015.
Esta é uma edição especial de capa dura com apenas um conto escrito em 1990 por Haruki Murakami, incluindo sofisticadas ilustrações no estilo de graphic novel, uma espécie de presente para os fãs do autor. Na verdade, o conto já havia sido lançado na antologia, ainda não traduzida e publicada no Brasil, "The Elephant Vanishes", com o título de "Sleep" (ler aqui resenha do Mundo de K), mas não deixa de ser uma boa oportunidade para apreciar as sutilezas da tradução direta do japonês de Lica Hashimoto e o trabalho do ilustrador alemão Kat Menschik em lindas tonalidades azuladas que valorizam e, até certo ponto, justificam uma edição tão pequena com pouco mais de 100 páginas, mas que certamente encontrará boa receptividade no mercado, considerando a crescente legião de novos fãs no ocidente de um dos autores mais populares da literatura japonesa da atualidade.
Como sempre, Murakami trabalha em uma região que mistura o real e o fantástico nas brechas da rígida sociedade japonesa urbana. O que acontece quando uma típica e dedicada dona de casa (sem nome) passa a não conseguir dormir por dezessete dias seguidos, sem o menor sinal de cansaço? Quais são os impactos desta inexplicável "ampliação da existência" na rotina monótona do seu cotidiano? A narrativa, em tom confessional de primeira pessoa e em alta velocidade, tem início com a aparente simplicidade que só os autores que dominam a técnica do conto conseguem atingir, como constatamos na ótima abertura abaixo:
"É o décimo sétimo dia em que não consigo dormir. Não se trata de insônia. Pois dela eu entendo um pouco. Na época da faculdade tive uma coisa parecida. Digo 'parecida', pois não posso afirmar categoricamente que aqueles sintomas estavam relacionados ao que as pessoas costumam chamar de insônia. Se eu tivesse procurado um médico, talvez ele teria me dito se aquilo era insônia ou não. Mas não procurei. Achei que seria perda de tempo. Uma decisão puramente intuitiva — desprovida de qualquer fundamento —, pautada pelo simples fato de eu achar que não valia a pena. Portanto, não procurei ajuda médica e, tampouco, quis comentar o fato com familiares e amigos. No fundo, eu sabia que, caso comentasse isso com alguém, certamente seria aconselhada a procurar um hospital." (pág. 5)
À princípio ela descobre o prazer de viver em um mundo paralelo, no qual encontra tempo para todas as atividades deixadas de lado desde a juventude, por exemplo, reler os romances preferidos como Ana Karenina, bebendo conhaque e comendo chocolate. Descobre novos significados na releitura de Tolstoi, muitos segredos nas entrelinhas que nunca tinha imaginado. E, no entanto, passada a fase inicial de aproveitamento do tempo e descobertas, vem aos poucos uma onda de melancolia e estranhamento em relação à própria vida e ao relacionamento com o marido e o filho (que nada percebem da sua existência paralela).
"Até então, eu achava que o sono era um tipo de morte. Ou seja, a morte seria uma extensão do sono. Em outras palavras, a morte era como dormir. Comparada ao sono, a morte era um sono bem mais profundo, sem consciência. Um descanso eterno, um blecaute. Era isso o que eu pensava. Mas pode ser que eu esteja errada, pensei. Será que a morte pode ser um tipo de situação totalmente diferente do sono? Será que a morte não seria uma escuridão profundamente consciente e infinita, como a que estou presenciando agora? A morte pode ser uma eterna vigília na escuridão. Se a morte é isso, é muito cruel. Se a morte não significa o descanso eterno, qual seria a salvação para as nossas vidas tão imperfeitas, tão cheias de incertezas? Ninguém sabe o que é a morte. Quem de fato a presenciou? Ninguém. A não ser quem já morreu. Entre os vivos, ninguém pode dizer o que é a morte. Aos vivos só resta fazer suposições. E a melhor suposição é apenas isso, uma suposição. Dizer que a morte é o descanso não faz sentido. A verdade só é revelada quando a pessoa morre. Nesse sentido, 'a morte pode ser qualquer coisa'." (págs. 100 e 101)
O leitor pressente que os eventos parecem levar a algum desfecho trágico e fora do controle da protagonista, principalmente quando as atividades noturnas evoluem da simples releitura de clássicos da juventude para passeios de carro solitários na madrugada, enquanto o marido e o filho dormem em casa. Ela não se enquadra mais na vida que levava até então, embora continue realizando as tarefas caseiras, agora precisa de respostas que expliquem o seu destino em rápida e irremediável transformação. O leitor solidário compartilha das suas reflexões enquanto ela dirige na estrada de Tóquio à Yokohama, sozinha na noite.
"Já passa das três da manhã, mas a quantidade de veículos na estrada ainda é grande. Os caminhões pesados, que vêm de oeste para leste, fazem o asfalto trepidar. Os caminhoneiros não dormem. Para aumentar o rendimento das entregas, eles dormem de dia e trabalham à noite. 'Eu poderia trabalhar de dia e de noite', penso. 'Afinal, não preciso dormir.' Sob o ponto de vista biológico, sei que isso não é normal. Mas quem seria capaz de dizer o que é normal? O que se considera biologicamente normal nada mais é do que o resultado de um raciocínio pautado em experiências. E estou num ponto que ultrapassa esse tipo de raciocínio. Será que eu poderia me considerar um exemplar único, uma precursora da espécie humana, que deu um salto na cadeia evolutiva? Uma mulher que não dorme. Uma consciência expandida. Eu abro um sorriso. Um salto na cadeia evolutiva. Sigo até o porto ouvindo música no rádio. Eu quero escutar música clássica, mas não encontro nenhuma estação que toque clássicos na madrugada. Todas as estações tocam apena rock japonês enfadonho. Músicas românticas ensebadas que dão nojo. São músicas que me fazem sentir que estou num local muito distante. Eu estou bem longe de Mozart e Haydn." (págs. 104 e 105)
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