Patti Smith - Linha M

Literatura norte-americana
Patti Smith - Linha M - Editora Companhia das Letras - 216 páginas - tradução de Claudio Carina - Lançamento no Brasil: 21/03/2016.

Um livro inspirador e que não pode ser classificado em uma única categoria, seja ela autobiografia, ficção ou ensaio, simplesmente porque é tudo isso ao mesmo tempo, assim como a performática Patti Smith que assume múltiplas formas de expressão artística, tais como: música, artes plásticas e poesia, não necessariamente nesta ordem. Preparem-se para uma viagem sem destino e, de preferência, sem pressa também, pelo sensível "mind train" da autora, vivendo a intimidade do seu processo criativo por meio de lembranças dos lugares que visitou ao redor do mundo e das perdas e conquistas da sua vida pessoal.

Diferente de "Just kids", vencedor do National Book Award de 2010, que descrevia o período da sua carreira desde a chegada em Nova York, no verão de 1967, até o lançamento do álbum de estreia, Horses, em 1975, em "Linha M" o foco está no presente, com inserções de lembranças aleatórias de um passado mais recente, principalmente da sua relação com a família e o marido, o guitarrista Fred (Sonic) Smith, que faleceu vítima de um infarte em 1994, aos 45 anos, mas com a narrativa voltando sempre aos momentos passados no Café 'Ino no Greenwich Village onde ela marcava presença diariamente, sempre na mesma mesa e com o seu inseparável caderno de notas, tentando registrar a passagem do tempo e as suas impressões sobre sonho e realidade.
"Fecho meu caderno e fico sentada no café pensando sobre o tempo real. Será que o tempo é ininterrupto? Só abrange o presente? Será que nossos pensamentos são apenas trens passageiros, sem paradas, destituídos de dimensão, zunindo com grandes cartazes de imagens repetidas? Captando um fragmento de um assento na janela, com um idêntico fragmento no próximo quadro? Se eu escrever no presente, com digressões, ainda será em tempo real? O tempo real, raciocinei, não pode ser dividido em seções, como números no mostrador de um relógio. Se eu escrever sobre o passado enquanto lido simultaneamente com o presente, ainda estou em tempo real? Talvez não exista passado nem futuro, somente um perpétuo presente contendo essa trindade da memória. Olhei para a rua e notei a luz mudando. Talvez o sol tenha se escondido atrás de uma nuvem. Talvez o tempo tenha escapado." (págs. 74 e 75)
O que mais surpreende no cotidiano de Patti Smith é o ascetismo de sua vida pessoal, uma vida solitária e muito distante do estereótipo que costumamos fazer de uma estrela de rock. O combustível do seu processo criativo não tem origem no álcool ou nas drogas, mas simplesmente nas inúmeras xícaras de café e no hábito de escrever diariamente. A convivência com os seus gatos, o prazer de assistir às séries de detetives preferidas como "The Killing", "Law and Order" e "CSI: Miami", a presença dos livros (muitos livros) e a fixação por fotos polaroides de objetos inusitados, tais como a cadeira onde Roberto Bolaño escreveu seus romances (incluindo 2666 que ela considera a primeira obra-prima do século), a bengala de Virginia Woolf, as muletas de Frida Kahlo, as sapatilhas de balé de Margot Fonteyn e os túmulos de Bertold Brecht, Arthur Rimbaud, Yukio Mishima, Akira Kurosawa, Jean Genet e Sylvia Plath.

As citações às suas paixões literárias são um atrativo adicional para os leitores compulsivos. No campo da poesia há referências à obra mística de William Blake, o romantismo alemão de Friedrich Schiller e Goethe, os simbolistas franceses Charles Baudelaire, Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, sem esquecer dos poetas russos Vladímir Maiakóvski e Anna Akhmátova, o legado de sofrimento e redenção de Sylvia Plath chegando até a geração beat com Ginsberg e William Burroughs. Na literatura em prosa uma profusão surpreendente de autores de diversas épocas e estilos, entre eles: Albert Camus, Jean Genet, Mikhail Bulgákov, Vladimir Nabokov, Herman Hesse, Bruno Schulz, Henry Miller, Roberto Bolaño, Haruki Murakami, W. G. Sebald, Yukio Mishima, Ryūnosuke Akutagawa e Osamu Dazai.

"Linha M" é muito fácil de ler, mas difícil de resenhar porque não segue uma estrutura narrativa linear ou uma sequência "lógica" de assuntos relacionados. Na verdade, representa uma jornada individual (que se torna universal) em uma espécie de colagem que segue unicamente o instinto poético e sensibilidade da autora. As suas lembranças partem de Saint-Laurent-du-Mer na Guiana Francesa, onde Jean Genet ficou preso aguardando a transferência para a Ilha do Diabo (que nunca ocorreu) para um improvável encontro na Islândia com Bobby Fischer, um dos maiores jogadores de xadrez do século XX, pulando para uma visita à Casa Azul no México onde Frida Kahlo e Diego Rivera viveram e viajando para uma temporada no Japão para visitar o templo dourado em Kyoto e o túmulo de Yukio Mishima. Enfim, cada capítulo é sempre uma surpresa para o leitor que nunca sabe qual será a próxima estação desse trem desgovernado no tempo e no espaço, algo muito parecido com o nosso destino, não é mesmo?
"Tenho vivido de acordo com o meu livro. Um livro que nunca planejei escrever, registrando o tempo para trás e para a frente. Já vi a neve cair no mar e segui os passos de um viajante que há muito se foi. Revivi momentos que foram perfeitos em sua certeza. Fred abotoando a camisa cáqui que usava nas aulas de voo. Pombos voltando para o ninho na nossa sacada. Nossa filha Jesse estendendo os braços de pé na minha frente. 
— Ah, mamãe, às vezes eu me sinto como uma árvore nova. 
Desejamos coisas que não podemos ter. Tentamos conservar certos momentos, sons sensações. Quero ouvir a voz da minha mãe. Quero ver meus filhos ainda crianças. Mãozinhas pequenas, pés ligeiros. Tudo muda. Garoto crescido, pai morto, filha mais alta que eu, chorando por causa de um sonho ruim. Por favor, fiquem aqui para sempre, digo para as coisas. Não vão embora. Não cresçam." (pág. 170)

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