Svetlana Aleksiévitch - O fim do homem soviético

Literatura russa - Nobel
Svetlana Aleksiévitch - O fim do homem soviético - Editora Companhia das Letras - 600 Páginas - Tradução direta do russo de Lucas Simone - Lançamento no Brasil: 10/11/2016.

Assim como nos dois livros anteriores da escritora e jornalista bielorussa Svetlana Aleksiévitch, prêmio Nobel de Literatura 2015, já publicados no Brasil pela Editora Companhia das Letras: Vozes de Tchernóbil e A guerra não tem rosto de mulher, aqui também a história deixa de ser uma ciência fria, que apenas reconstitui cronologicamente os fatos do passado, passando a assumir uma abordagem humanista, por meio de centenas de depoimentos de pessoas simples que foram, ao mesmo tempo, as vítimas e os carrascos das transformações políticas que vivenciaram na Rússia durante o longo e violento século XX, um povo que se acostumou a sobreviver (e não viver) à sombra de um ideal grandioso, sempre em períodos de guerra ou de preparação para a guerra. "Mesmo durante a paz, tudo na vida era próprio da guerra. O tambor batia, a bandeira esvoaçava... o coração saltava do peito... A pessoa não percebia sua escravidão, até amava sua escravidão."

A autora se concentra nas gerações de Stálin, Khruschóv, Brêjniev e Gorbatchóv, compondo, desta forma, um painel da ascensão e queda do império soviético: o regime de mão de ferro stalinista após a Segunda Grande Guerra, o período de Guerra Fria com as ameaças de uso de armas nucleares e o fim da ideologia comunista criada pelo Partido Bolchevique de Lênin, concluindo com o súbito epílogo representado pela dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a condução dos processos de abertura política, conhecidos no ocidente como Perestroika e Glasnost, processos mal conduzidos que acabaram levando à formação de um capitalismo selvagem e ainda mais sofrimento para o povo russo. Uma trajetória que a própria Sevetlana Aleksiévitch vivenciou e resume muito bem com esta afirmação: "ninguém nos ensinou o que era a liberdade. Só nos ensinaram a morrer pela liberdade."

"Eu nasci soviética... Nossa avó não acreditava em Deus, mas acreditava no comunismo. Nosso pai esperou até o fim da vida a volta do socialismo. Já tinha caído o muro de Berlim, a União Soviética tinha desmoronado, e ele mesmo assim continuou esperando. Brigava constantemente com o melhor amigo, quando ele chamava a bandeira de trapo vermelho. Nossa bandeira vermelha! Escarlate! Meu pai lutou na guerra da Finlândia; ele nunca entendeu por que estavam lutando, mas era preciso ir, e ele foi (...) Em 1940 terminou a campanha da Finlândia. Os prisioneiros de guerra soviéticos foram trocados por finlandeses, que estavam sobre a nossa custódia. Foram ao encontro uns dos outros em colunas. Os finlandeses, quando chegaram ao lado deles, começaram a se abraçar, a apertar as mãos... Os nossos não foram recebidos assim, foram recebidos como inimigos. 'Irmãos! Meus queridos!', e correndo na direção de seus companheiros. 'Alto! Um passo para fora da formação, e nós atiraremos!' A coluna foi cercada por soldados com cães policiais, e eles foram levados para barracões preparados especialmente para aquilo. Ao redor dos barracões, havia arame farpado. Começaram os interrogatórios... 'Como você foi feito prisioneiro?', perguntou o investigador ao meu pai. 'Fui tirado de um lago pelos finlandeses.' 'Você é um traidor! Salvou a sua própria pele, não a pátria.' Meu pai também se sentia culpado. Tinham sido ensinados assim... Não houve nenhum julgamento Todos foram levados para a praça de armas, onde leram diante da formação a ordem: seis anos no campo de trabalhos por traição à pátria." - Parte da entrevista com Ielena Iúrievna S., terceira secretária do comitê distrital do Partido, 49 anos (Págs. 63 - 65)
Assim, entre os defensores e opositores do ideal comunista, a visão humana da escritora sobre a história do povo soviético, tantas vezes absurda e violenta, acaba transformando o texto em uma espécie de obra de ficção. Talvez porque as perguntas de Svetlana não se concentrem unicamente na história do socialismo, mas sim "sobre a infinita quantidade de verdades humanas (...) sobre o amor, o ciúme, a infância, a velhice", fazendo com que os depoimentos transbordem de emoção e ganhem uma perspectiva universal. Na verdade, em um país de dimensões continentais e com uma natureza hostil em muitas regiões, que transforma a vida diária em um desafio, nem sempre o povo russo do interior se dá conta das reviravoltas políticas em Moscou, constantemente ocupados com a própria sobrevivência, como podemos constatar no trecho da entrevista abaixo com uma cidadã soviética não identificada.
"O que eu posso lembrar? Vivo como todo mundo. Teve a perestroika... O Gorbatchóv... A carteira abriu a cancela: 'Você ouviu, não tem mais comunistas'. 'Como não?' 'Fecharam o Partido.' Ninguém atirou, nada. Agora dizem que foi uma grande potência e que perdemos tudo. Mas o que foi que eu perdi? Do mesmo jeito que eu vivia na minha casinha sem qualquer comodidade — sem água, sem esgoto, sem gás — eu, continuo vivendo. Trabalhei honestamente a vida inteira. Dei duro, me acostumei a dar duro. E sempre recebi meu dinheiro. Eu antes comia macarrão e batata, e agora continuo comendo. Uso o meu casaco soviético surrado. E temos cada neve aqui! (...) No inverno, ficamos cobertos de neve, o vilarejo inteiro fica debaixo de neve: as casas, o carros. Às vezes os ônibus ficam semanas sem passar. E lá na capital? Daqui até Moscou são mil quilômetros. Vemos a vida moscovita pela televisão, como se fosse um filme. Conheço o Pútin e a Alla Pugatchova... de resto, ninguém... Os protestos, as manifestações... Mas aqui nós continuamos a viver como antes. Tanto no socialismo como no capitalismo. Para nós, 'brancos' e 'vermelhos' são a mesma coisa. Temos que esperar a primavera. Plantar as batatas... (Longo silêncio) Tenho sessenta anos... Não vou à igreja, mas preciso conversar um pouco com alguém. Conversar sobre outras coisas... De como não tenho vontade de envelhecer, não quero de jeito nenhum envelhecer. E que pena é ter que morrer. Você viu o meu lilás? Eu saio de madrugada, ele brilha. Eu fico parada olhando. Vou só ali pegar algumas e fazer um buquê para você..." - Observações de uma cidadã (Págs. 593 - 594)

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar O fim do homem soviético de Svetlana Aleksiévitch

Literatura russa - Nobel
Vozes de Tchernóbil, A guerra não tem rosto de mulher e O fim do homem soviético

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As 20 obras mais importantes da literatura francesa

As 20 obras mais importantes da literatura japonesa

As 20 obras mais importantes da literatura brasileira

As 20 obras mais importantes da literatura portuguesa

As 20 obras mais importantes da literatura italiana

As 20 obras mais importantes da literatura dos Estados Unidos