Mônica Machado - Antropologia Digital e Experiências Virtuais do Museu de Favela
Mônica Machado - Antropologia Digital e Experiências Virtuais do Museu de Favela - Editora Appris - 231 Páginas - Lançamento: 10/11/2017
A divisão entre a cidade formal e as favelas na paisagem urbana do Rio de Janeiro é uma realidade que não pode ser ignorada. Após décadas de políticas públicas inadequadas as comunidades carentes continuam a ocupar territórios cada vez mais densamente povoados e sem condições básicas de infraestrutura, além de serem estigmatizadas pela população das áreas mais privilegiadas devido à insegurança provocada pelos altos índices de criminalidade e violência. O resgate desta imensa dívida social passa pela necessidade de projetos consistentes e auto-sustentáveis de urbanização das favelas assim como de iniciativas de inclusão social que garantam o exercício da cidadania plena e reafirmação dos valores locais para essas populações.
É surpreendente como algumas soluções para tantos problemas podem surgir a partir de ações da própria comunidade, como é o caso do Museu de Favela (MUF), uma organização não governamental de caráter comunitário, fundada em 2008 por lideranças culturais moradoras das favelas Pavão, Pavãozinho e Cantagalo com o objetivo de transformar a área dos morros localizados entre os valorizados bairros de Ipanema, Copacabana e Lagoa, em monumento turístico e cultural do Rio de Janeiro por meio de projetos com base na história de formação de favelas, origens culturais do samba, cultura do migrante nordestino, cultura negra, artes visuais, dança e demais ações relevantes para a vida comunitária, além da adoção do conceito pioneiro de "museu territorial" com a instalação e visitação da galeria-piloto a céu aberto, o Circuito das Casas-Telas — casas de moradores grafitadas com registros visuais de memórias coletivas locais. Um exemplo de aplicação prática da museologia social.
O livro da professora e pesquisadora Mônica Machado divulga as experiências de ativação digital do Museu de Favela, junto às comunidades do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, avaliando os hábitos de uso das redes sociais pela comunidade, especialmente o Facebook e WhatsApp, nas relações culturais locais que se evidenciam nos seguintes tópicos desenvolvidos no texto: o impacto na vida cotidiana e sociabilidade, ativismo político, comportamento religioso e a linguagem do entretenimento e humor. Esta pesquisa, que foi viabilizada por meio da parceria institucional do núcleo de extensão do Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA-ECO/UFRJ) e a coordenação do MUF, também orientou a implantação da revista digital do Museu de Favela, o hotsite do Circuito Casas-Tela e a gestão das páginas do Facebook, Twitter e Instagram.
Uma das conclusões de Mônica Machado é que a principal motivação dos moradores do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho para uso do Facebook está no compartilhamento de ideias e fortalecimento dos vínculos afetivos entre amigos e parentes. Particularmente, nos casos de parentes que vivem distantes e mães que são forçadas a deixar os filhos pequenos com "cuidadoras" para poderem trabalhar, as plataformas digitais também desempenham um papel importante na comunidade. Na verdade, já existe nas favelas cariocas um sentimento de sociabilidade muito forte como podemos evidenciar com as demonstrações da força de trabalho colaborativo (mutirões), as coletas coletivas de lixo e o conceito de família que envolve vizinhos e amigos. Este comportamento social passa a ser refletido e amplificado no ambiente digital. Resumindo: "A experiência de ativação digital na favela é revelada por uma comunicação com o espírito de solidariedade e um jogo de compartilhamento da cultura comunitária visível em várias mensagens, imagens e fotos nos conteúdos digitais" (Pág. 133)
Sobre a questão do ativismo político, a conclusão da pesquisadora é que ocorre com a comunidade do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, um fenômeno semelhante ao de outras áreas da nossa sociedade, ou seja, a identificação de "filtros ideológicos" das redes sociais que "estão cada vez mais orientadas pelo pressuposto econômico de aproximar pessoas por relevância de interesses comuns, reduzindo a convivência com quem pensa diferente. Essa irradiação da conectividade por matriz ideológica ou afinidades temáticas cria a impressão de que todo mundo ao redor pensa igual e certos temas que poderiam fazer parte da agenda coletiva são desprestigiados e outros menos relevantes ganham forte visibilidade nas estratégias de personalização de informações para nichos" (Pág. 138). De qualquer forma, talvez devido à falta de crença na classe política brasileira, os moradores estão mais interessados em movimentos de valorização de micropolíticas e irradiação das vozes culturais locais.
O sincretismo religioso brasileiro fica evidente na favela, herança da variedade de influências que o país recebeu desde o período de colonização, rituais religiosos indígenas, as tradições cristãs, influências africanas como o candomblé e a umbanda, mais recentemente os movimentos protestantes, especialmente as organizações neopentecostais. Seja for a origem, a fé é um mecanismo absolutamente necessário para superação das dificuldades e esperança no futuro de uma vida mais digna e justa, como fica evidente neste trecho do livro: "No breve inventário que fizemos em algumas casas onde entrevistamos moradores onde famílias têm relações religiosas diferentes, pudemos observar como objetos religiosos se revertem em amuletos ou signos de proteção e sorte, e notamos mais uma vez que pertencem a práticas religiosas distintas. Em uma casa, observamos, por exemplo, em uma mesma prateleira de devoções ou cultuações religiosas: uma cruz, Salmo 91 aberto da Bíblia como ícone protetor, uma caixinha de promessas com trechos selecionados da Bíblia que são sorteados para leitura diária, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Em outra casa encontramos: velas, água ungida, arruda, rosa, pedrinhas de Israel, pão da sorte, cajado de Moisés. E em mais um indício da bricolagem de referências religiosas que compartilham o mesmo espaço doméstico, em uma casa no Terreirão encontramos no mesmo ambiente: figa, crucifixo, escapulário, terço, elefantes e patuá de Oxalá." (Pág. 162)
Sabemos, por experiência própria, que no Facebook e outras redes sociais, o humor e o compartilhamento de memes e vídeos engraçados ocupam a maior parte das postagens. A pesquisa de Mônica Machado comprova que na favela não é diferente, até mesmo porque a brincadeira e o "jogo de cintura" são componentes fundamentais para reforçar os vínculos sociais e a sobrevivência em um ambiente difícil. "Muitas vezes ouvi dos moradores que a cor, a celebração e a brincadeira são os componentes mais significantes da resistência à dor, à falta de proteção e recursos. E também os sons da favela — latidos de cachorros, música funk, ritmos evangélicos, barulho de moto, danças do hip hop, pagode, barulho de crianças brincando na rua, pássaros cantando —; todos esses elementos sonoros são vibrantes e cheios de vida." (Pág. 176)
O livro é uma contribuição importante para a área de pesquisas sobre antropologia digital e comunicação social, mas também uma oportunidade para todos aqueles interessados em conhecer mais sobre um universo tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante. Mônica Machado, que hoje é uma das titulares do Conselho do Museu de Favela, nos ensina a entender melhor as complexidades do Rio de Janeiro e encontrar possíveis soluções para uma sociedade mais justa e um futuro com dignidade e cidadania para todos nós.
A divisão entre a cidade formal e as favelas na paisagem urbana do Rio de Janeiro é uma realidade que não pode ser ignorada. Após décadas de políticas públicas inadequadas as comunidades carentes continuam a ocupar territórios cada vez mais densamente povoados e sem condições básicas de infraestrutura, além de serem estigmatizadas pela população das áreas mais privilegiadas devido à insegurança provocada pelos altos índices de criminalidade e violência. O resgate desta imensa dívida social passa pela necessidade de projetos consistentes e auto-sustentáveis de urbanização das favelas assim como de iniciativas de inclusão social que garantam o exercício da cidadania plena e reafirmação dos valores locais para essas populações.
É surpreendente como algumas soluções para tantos problemas podem surgir a partir de ações da própria comunidade, como é o caso do Museu de Favela (MUF), uma organização não governamental de caráter comunitário, fundada em 2008 por lideranças culturais moradoras das favelas Pavão, Pavãozinho e Cantagalo com o objetivo de transformar a área dos morros localizados entre os valorizados bairros de Ipanema, Copacabana e Lagoa, em monumento turístico e cultural do Rio de Janeiro por meio de projetos com base na história de formação de favelas, origens culturais do samba, cultura do migrante nordestino, cultura negra, artes visuais, dança e demais ações relevantes para a vida comunitária, além da adoção do conceito pioneiro de "museu territorial" com a instalação e visitação da galeria-piloto a céu aberto, o Circuito das Casas-Telas — casas de moradores grafitadas com registros visuais de memórias coletivas locais. Um exemplo de aplicação prática da museologia social.
O livro da professora e pesquisadora Mônica Machado divulga as experiências de ativação digital do Museu de Favela, junto às comunidades do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, avaliando os hábitos de uso das redes sociais pela comunidade, especialmente o Facebook e WhatsApp, nas relações culturais locais que se evidenciam nos seguintes tópicos desenvolvidos no texto: o impacto na vida cotidiana e sociabilidade, ativismo político, comportamento religioso e a linguagem do entretenimento e humor. Esta pesquisa, que foi viabilizada por meio da parceria institucional do núcleo de extensão do Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA-ECO/UFRJ) e a coordenação do MUF, também orientou a implantação da revista digital do Museu de Favela, o hotsite do Circuito Casas-Tela e a gestão das páginas do Facebook, Twitter e Instagram.
Uma das conclusões de Mônica Machado é que a principal motivação dos moradores do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho para uso do Facebook está no compartilhamento de ideias e fortalecimento dos vínculos afetivos entre amigos e parentes. Particularmente, nos casos de parentes que vivem distantes e mães que são forçadas a deixar os filhos pequenos com "cuidadoras" para poderem trabalhar, as plataformas digitais também desempenham um papel importante na comunidade. Na verdade, já existe nas favelas cariocas um sentimento de sociabilidade muito forte como podemos evidenciar com as demonstrações da força de trabalho colaborativo (mutirões), as coletas coletivas de lixo e o conceito de família que envolve vizinhos e amigos. Este comportamento social passa a ser refletido e amplificado no ambiente digital. Resumindo: "A experiência de ativação digital na favela é revelada por uma comunicação com o espírito de solidariedade e um jogo de compartilhamento da cultura comunitária visível em várias mensagens, imagens e fotos nos conteúdos digitais" (Pág. 133)
Sobre a questão do ativismo político, a conclusão da pesquisadora é que ocorre com a comunidade do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, um fenômeno semelhante ao de outras áreas da nossa sociedade, ou seja, a identificação de "filtros ideológicos" das redes sociais que "estão cada vez mais orientadas pelo pressuposto econômico de aproximar pessoas por relevância de interesses comuns, reduzindo a convivência com quem pensa diferente. Essa irradiação da conectividade por matriz ideológica ou afinidades temáticas cria a impressão de que todo mundo ao redor pensa igual e certos temas que poderiam fazer parte da agenda coletiva são desprestigiados e outros menos relevantes ganham forte visibilidade nas estratégias de personalização de informações para nichos" (Pág. 138). De qualquer forma, talvez devido à falta de crença na classe política brasileira, os moradores estão mais interessados em movimentos de valorização de micropolíticas e irradiação das vozes culturais locais.
O sincretismo religioso brasileiro fica evidente na favela, herança da variedade de influências que o país recebeu desde o período de colonização, rituais religiosos indígenas, as tradições cristãs, influências africanas como o candomblé e a umbanda, mais recentemente os movimentos protestantes, especialmente as organizações neopentecostais. Seja for a origem, a fé é um mecanismo absolutamente necessário para superação das dificuldades e esperança no futuro de uma vida mais digna e justa, como fica evidente neste trecho do livro: "No breve inventário que fizemos em algumas casas onde entrevistamos moradores onde famílias têm relações religiosas diferentes, pudemos observar como objetos religiosos se revertem em amuletos ou signos de proteção e sorte, e notamos mais uma vez que pertencem a práticas religiosas distintas. Em uma casa, observamos, por exemplo, em uma mesma prateleira de devoções ou cultuações religiosas: uma cruz, Salmo 91 aberto da Bíblia como ícone protetor, uma caixinha de promessas com trechos selecionados da Bíblia que são sorteados para leitura diária, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Em outra casa encontramos: velas, água ungida, arruda, rosa, pedrinhas de Israel, pão da sorte, cajado de Moisés. E em mais um indício da bricolagem de referências religiosas que compartilham o mesmo espaço doméstico, em uma casa no Terreirão encontramos no mesmo ambiente: figa, crucifixo, escapulário, terço, elefantes e patuá de Oxalá." (Pág. 162)
Sabemos, por experiência própria, que no Facebook e outras redes sociais, o humor e o compartilhamento de memes e vídeos engraçados ocupam a maior parte das postagens. A pesquisa de Mônica Machado comprova que na favela não é diferente, até mesmo porque a brincadeira e o "jogo de cintura" são componentes fundamentais para reforçar os vínculos sociais e a sobrevivência em um ambiente difícil. "Muitas vezes ouvi dos moradores que a cor, a celebração e a brincadeira são os componentes mais significantes da resistência à dor, à falta de proteção e recursos. E também os sons da favela — latidos de cachorros, música funk, ritmos evangélicos, barulho de moto, danças do hip hop, pagode, barulho de crianças brincando na rua, pássaros cantando —; todos esses elementos sonoros são vibrantes e cheios de vida." (Pág. 176)
O livro é uma contribuição importante para a área de pesquisas sobre antropologia digital e comunicação social, mas também uma oportunidade para todos aqueles interessados em conhecer mais sobre um universo tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante. Mônica Machado, que hoje é uma das titulares do Conselho do Museu de Favela, nos ensina a entender melhor as complexidades do Rio de Janeiro e encontrar possíveis soluções para uma sociedade mais justa e um futuro com dignidade e cidadania para todos nós.
Comentários