George Saunders - Lincoln no Limbo

Literatura Estados Unidos
George Saunders - Lincoln no Limbo - 408 Páginas - Editora Companhia das Letras - Tradução de Jorio Dauster - Lançamento: 26/03//2018 (Leia aqui um trecho disponibilizado pela Editora).

A relação de finalistas (longlist) do Man Booker Prize de 2017, talvez o mais conceituado prêmio literário em língua inglesa, surpreendeu pelo nível dos escritores selecionados, nomes consagrados como: Paul Auster, Arundhati Roy, Ali Smith, Zadie Smith e Colson Whitehead, fizeram daquele ano um dos mais difíceis na história da premiação, desde 1968. Na ocasião em que foi anunciada a shortlist, havia um consenso de que Paul Auster e seu último romance, "4 3 2 1", depois de um período de sete anos sem publicações, deveria ser o escolhido com facilidade. Assim, quando a organização divulgou que George Saunders, apesar de já ser um premiado autor no estilo de contos, havia levado o Booker de 2017 com o primeiro romance de sua carreira, "Lincoln in the Bardo", fiquei realmente curioso para conhecer esta obra, lançada agora pela Companhia das Letras como "Lincoln no Limbo" em ótima tradução de Jorio Dauster.

E já começo esta resenha com a afirmação de que "Lincoln no Limbo" é um dos livros mais emocionantes e criativos que li nos últimos tempos. Partindo de acontecimentos históricos reais durante a Guerra Civil dos EUA, sem que possa ser considerado um romance histórico tradicional, o autor imaginou uma desesperada visita do então inconformado presidente Abraham Lincoln, feita em 1862, ao corpo de seu filho Willie de 11 anos, vítima de febre tifoide, na noite após o sepultamento do menino, em um mausoléu no cemitério de Washington. A tragédia pessoal de Lincoln, que ocorre durante um dos períodos mais brutais da história, quando morreram mais americanos do que em qualquer outra guerra que o país tenha participado, a violência da escravidão que divide a nação entre sulistas confederados e a União, todos esses elementos estão presentes na obra de Saunders.

A primeira decisão acertada da tradução foi utilizar a expressão "limbo" no lugar de "bardo". Na definição original da Igreja Católica, o limbo seria um lugar fora dos limites do céu para onde iriam as crianças não-batizadas (uma visão que foi abolida pelo Vaticano em 2007). Logo, um espaço às margens de Deus, daí a origem da palavra em latim, "limbus", que significa margem, beira, borda, orla. O substantivo é muito utilizado em língua portuguesa para expressar, em sentido figurado, um lugar onde são deixadas coisas sem valor e que são esquecidas, o que guarda alguma semelhança com o conceito de "bardo", utilizado no original, menos conhecido do grande público e que, no budismo tibetano, representa o estado de transição entre a morte e o renascimento.

O filho de Lincoln, Willie, se encontra justamente neste espaço intermediário, um estágio pós-morte ou limbo, assim como os outros personagens-narradores. Nesta fase, todos eles não acreditam ou se recusam a admitir a própria morte, preferindo crer que trata-se de uma fase de recuperação provisória e que retornarão, de alguma forma, para as suas vidas de origem. Eles se referem ao estado atual por meio de uma série de eufemismos, assim o caixão é chamado de "caixa de doente" e a palavra "morte" é evitada a todo custo. O tempo que cada um passa neste estágio é diferente, em função da dependência que ainda sentem em relação às suas vidas passadas, podendo levar alguns dias ou muito anos, até que finalmente ocorra o fenômeno da conversão matéria-luz, um evento temido por todos.

Entre a legião de narradores destacam-se três: Hans Vollman, Roger Bevins III e o reverendo Everly Thomas. Vollman sofreu um acidente fatal no dia em que iria consumar sexualmente o seu casamento e o seu espectro aparece sempre nu e com uma grande ereção permanente, Bevins foi em vida um homossexual que cometeu suicídio cortando os pulsos devido a uma desilusão amorosa, arrependendo-se no último instante (quando já era tarde), ele tem a forma de dezenas de mãos, olhos, bocas e narizes e o reverendo é o mais velho dos três, aparentemente mais sensato, está sempre com a aparência assustada porque teme ser enviado para o inferno após o limbo.
"Cedo em minha juventude descobri ter certa predileção que, para mim, parecia perfeitamente natural e até mesmo maravilhosa, embora para outros — papai, mamãe, irmãos, amigos, professores, padres, avós — ela não parecesse nem um pouco natural e maravilhosa, e sim imoral e vergonhosa. Sofri com isso: deveria negar minha predileção e me casar, condenando-me a certa, digamos, carência de realização? Eu queria ser feliz (como creio todos desejam ser felizes), por isso iniciei uma amizade inocente — bem, 'bastante' inocente - com um colega de escola. Mas, como logo vimos não haver esperança para nós (passando rapidamente por cima de alguns detalhes, idas e vindas, recomeços, decisões sinceras e a negação dessas decisões, lá num canto da, ãhn, garagem de carruagens, e por aí vai), certa tarde, creio que um dia depois de uma conversa particularmente franca na qual Gilbert expressou sua intenção de dali em diante 'viver com correção', levei uma faca de açougueiro para o quarto e, após escrever um bilhete a meus pais (cujo tema central era 'Sinto muito') e outro a ele (Amei, por isso parto realizado), cortei os pulsos de forma violenta sobre uma bacia de porcelana." Narração de Roger Bevins III (Págs. 33 e 34)
Toda a ação do romance ocorre na região do cemitério Oak Hill durante a noite em que Lincoln, sozinho, abraça o corpo sem vida do seu filho, cheio de culpa e remorsos ele imagina no seu luto que poderia ter evitado a tragédia. O sofrimento do presidente e sua impotência diante da morte, assim como a preocupação com o destino do pobre Willie, afetará o comportamento de todos os fantasmas-narradores que, enquanto descrevem as suas próprias histórias, de como chegaram naquela situação, nos ajudam também a entender o momento de mudança por que passa o país e que dependerá das ações de Lincoln que precisa se recuperar da sua tragédia pessoal e encontrar forças para completar o seu mandato presidencial.

Escrever um romance com múltiplas vozes narrativas já não é novidade na literatura contemporânea, mas o que George Saunders faz aqui é bem diferente. O uso da polifonia é levado ao extremo com dezenas de narradores e pontos de vista diferentes (escravos, militares, ricos e pobres), a maioria formada por fantasmas, mas também por registros históricos de livros e jornais (verdadeiros e falsos), muitas vezes conflitantes entre si, provando que a reconstituição de eventos da história pode se transformar muitas vezes na mais pura ficção e vice-versa. O emocionante trecho abaixo é um depoimento de uma das personagens, uma escrava, sobre os abusos sofridos pela amiga que perdeu a fala devido aos traumas sofridos na sua existência anterior.
"O que fizeram com ela foi feito muitas vezes e por muitos. O que fizeram com ela não poderia sofrer resistência, não sofreu resistência, às vezes sofreu resistência, o que resultou às vezes em ser mandada para longe, para algum lugar pior, outras vezes a resistência foi simplesmente superada pela força (com socos, joelhadas, pauladas etc.). O que fizeram com ela foi feito e refeito. Também foi feito só uma vez. O que fizeram com ela não afetou ela em nada, afetou ela em tudo, fez ela ficar com tremedeiras nervosas, perder a fala, fez ela pular da ponte do ribeirão Cedar, fez ela cair neste silêncio obstinado. O que fizeram com ela foi feito por homens grandes, homens pequenos, patrões, homens que por acaso passavam pelo campo onde ela trabalhava, por três homens bêbados que iam saindo de casa e que viram ela lá cortando lenha. O que fizeram com ela foi feito em horários programados, como uma forma sinistra de frequentar a igreja; foi feito a qualquer hora do dia; nunca foi feito por completo, de uma vez só, mas foi constantemente ameaçado: iminente e permitido; o que fizeram com ela foi fodê-la na posição papai e mamãe, o que foi feito com ela foi fodê-la por trás (quando a infeliz nem tinha ouvido falar nisso); o que fizeram com ela foram pequenas coisas doentias (acompanhadas de palavras brutais de camponeses mirrados que jamais sonhariam em fazer coisas iguais com uma mulher de sua própria raça), foi feito com ela como se ninguém mais estivesse lá, só ele, o homem que fazia a coisa, e ela fosse só uma estátua de cera (quente, silenciosa); o que fizeram com ela foi o que qualquer um quisesse fazer, e mesmo que alguém só tivesse um pouquinho de vontade de fazer alguma coisa com ela, bom poderia fazer, poderia ser feito, alguém fez, foi feito, foi feito, refeito e..." Narração da Sra. Francis Hodge (Pág. 260)
Nem todas as narrativas são melancólicas ou violentas  embora as que eu tenha escolhido nas citações o sejam , na verdade o tom geral do romance é bem-humorado e esperançoso, mesmo lidando com situações trágicas como a cena de um pai inconformado que abraça o cadáver do filho durante a noite. Talvez este tenha sido um dos maiores méritos de George Saunders, não permitir que o experimentalismo narrativo, nem tampouco o delicado tema da morte, tornassem pesada a leitura do romance que, muito pelo contrário, é leve e emocionante, daquele tipo que deixa saudade. Certamente já pode ser considerado um dos melhores lançamentos deste ano, muito recomendado.

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