Carlos Machado - Esquina da minha rua

Literatura brasileira contemporânea
Carlos Machado - Esquina da minha rua - Editora 7Letras - 88 Páginas - Lançamento: 09/11/2018.

Carlos Machado escreve duas narrativas paralelas, intercaladas em cada capítulo, que correspondem às vozes de personagens com trajetórias de vida bem diferentes e que, contudo, estão ligadas a um passado comum. Partindo de uma Curitiba literária, que tem Dalton Trevisan como maior referência, o autor cita as cidades invisíveis de Ítalo Calvino e outros escritores que habitaram também cidades criadas pela ficção como Fernando Pessoa, Antonio Tabucchi e Mario Benedetti, criando um texto de muita sensibilidade que trabalha com a memória e a solidão dos seus dois protagonistas.

Pedro é músico e escritor, cidadão do mundo, que leva a sua cidade na memória para todos os cantos, envolvido com as suas composições e a gravação do último disco, ele reflete sobre o processo criativo e suas lembranças. Ela, protagonista sem nome, leva uma vida simples e só conhece a esquina da própria rua, escrevendo cartas monótonas para Pedro nas quais conta detalhes do seu cotidiano, seus problemas de saúde. É por meio dessa narrativa fragmentada, oscilando entre partir e permanecer, lembrar e esquecer, que o leitor vai formando aos poucos a sua própria percepção da relação entre os personagens e do meio em que vivem.
"Essa poça d'água me chamou a atenção. Ela refletia os prédios da praça Osório como se fossem outros edifícios. Não aqueles que se veem quando ando sem o guarda-chuva de quase todos os dias. Quando tem sol, Curitiba se mostra para cima, até a ponta do céu. Dessa forma, sempre reconheço os mesmos lugares a cada hora que passo por ali. Se fico muitos dias sem repetir o caminho, o que de carta forma é muito difícil, tento me surpreender com eles. Às vezes funciona. Mas quando todos estão se desviando da chuva, tenho a impressão de que a cidade só existe do joelho para baixo. Nesse momento, me ocorreu uma sensação de estranhamento ao descobrir as imagens repetidas de forma inversa nessa poça d'água. Uma espécie de cidade invisível que só me dei conta de que existia quando li as histórias de Ítalo Calvino. Talvez eu não saiba que a minha cidade invisível também exista, mas sim, ela está em todos os lugares que não se vê. Nada mais óbvio. Hoje, diante desse reflexo estampado no chão, entendi que existem muitas outras cidades dentro dela mesma. Muitas outras Curitibas que respiram ao redor. Por aí. Nas poças d'água. [...]" (p. 7)
Ela ficou, sempre viveu na mesma Curitiba, trabalhou na mesma escola, aprisionada por uma rotina de tratamento e controle do diabetes, segue a carreira de Pedro de longe. Ele partiu e viajou por muitas cidades do Brasil e do exterior mas, de certa forma, descobriu que, assim como ela, também nunca saiu da mesma esquina, os caminhos por que passou sempre o levaram de volta a Curitiba, mesmo quando a volta foi mais difícil que a partida. De qualquer forma, sabe que não há alternativa, quando pergunta: "É possível deixar de estar aqui?".
"A volta pode ser ainda mais difícil. Talvez mais triste que a partida. Não sei. Quem fica, quem espera, sofre mais. Mas para quem foi, regressar é duro e confortável. Voltar ao barulho da chuva caindo por detrás da parede do estúdio, aos azulejos gastos pelo tempo, aos violões. Voltar ao banheiro com cheiro de mofo, infiltração e aos cochichos dos hóspedes dos apartamentos ao lado. Trazer para essa Curitiba o quente do Norte, o cheiro dos rios, a sujeira das ruas, os gritos dos vendedores ambulantes, a areia, a música composta pelos ribeirinhos, a neve que cai lentamente pela janela do bar, como quando chove em Curitiba por dias sem parar. As histórias sobre pedras, lesmas e árvores do poeta pantaneiro, a viola-de-cocho. As palavras que saíram de Recife, Salvador, Corumbá e se deitaram ao meu lado para sempre. Quando volto para minha cidade, só sei juntar palavras. Contemplo. Canto. E é sempre bom voltar quando a volta não significa estar novamente no mesmo lugar. É possível deixar de estar aqui?" (pp. 48 e 49)
Carlos Machado é escritor, professor, cantor e compositor. Publicou os livros: A voz do outro (contos, 2004, Editora 7Letras), Nós da província: diálogo com o carbono (contos, 2005, Editora 7Letras), Balada de uma retina sul-americana (novela, 2006, Editora 7Letras), Poeira fria (novela, 2012, Editora Arte e Letra) e Passeios (contos, 2016, Editora 7Letras).

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