Diego Vinhas - Corvos contra a noite

Poesia brasileira contemporânea
Diego Vinhas - Corvos contra a noite - Editora 7 Letras - 116 Páginas - Capa de Bruno Brum sobre mural Rage against the machine (Lisboa, 2012) de Daniel Eime - Lançamento: 2020.

É preciso esperança e paciência para chegarmos ao final deste maldito ano de 2020, mas alerto que neste livro você não encontrará subterfúgio ou qualquer tipo de fuga da realidade, pelo contrário, aqui a poesia de Diego Vinhas não se conforma e avança contra as trevas, lançando um necessário grito de ódio contra a injustiça e arbitrariedade de um sistema cruel, como no profético poema Ano do cachorro que nos lembra o "peso faminto do real" tão presente em nosso tempo, particularmente neste "ano manco".

Na apresentação de Tarso de Melo encontramos uma oportuna lembrança: "a poesia não é uma forma de fugir do mundo, mas sim de invadi-lo, de atacá-lo", particularmente em nosso caso – vivendo em uma sociedade que normalmente prefere ignorar a realidade – torna-se ainda mais importante este grito visceral da poesia que reflete sobre a hipocrisia dos clichês como em Lei do abate: "tem que acabar com direito de vagabundo" e resume com a instrução final: "tem que matar".

O mundo também parece atravessar uma longa noite sem fim quando a tecnologia trabalha a favor do assassinato, consentido pelo direito internacional, nos mostra o longo e assustador poema Elogio do Drone: "o olho sem vida / pode acompanhar o alvo por semanas / ver o alvo escovar os dentes / imitado pelo filho menor / e atravessar a porta da rua sem se despedir / do cachorro capturado pelo único oásis de sombra / na sala a essa hora [...] deus é uma ferramenta binária / de input/output na modalidade bem/mal / esencial à estrutura da aniquilação".

Lei do abate

tem que ter lei.
tem que bater mesmo.
tem que parar com isso.
tem que se dar ao respeito.
tem que virar comida de peixe.
tem que levar pra casa se tem dó.
tem que defender quem é de família.
tem que insistir que no fundo ela quer.
tem que ver que com essa roupa tá pedindo.
tem que acabar com direito de vagabundo.
tem que deixar claro quem é que manda.
tem que trancar e jogar a chave fora.
tem que honrar a palavra de deus.
tem que dar o recado bem dado.
tem que enfiar a mão toda.
tem que mirar na cara.
tem que matar.

Miséria

está 
nas roupas por lavar 
em formação de cordilheira 
sobre a cama, no 

pré-molar que mastiga, mastiga 
sem discernir os legumes em flutuação 
no caldo ferruginoso (névoa de sopa 
trabalhando como orvalho 
na tela do PC ligado para ninguém). 

na casa inteira em rotas de fuga 
dos pedaços expulsos do sonho. 

no exílio feroz do corpo 

nas estrias da pele 
verde-água da geladeira 
e no gesto 

em arrumar a trança na filha, as mãos 
adultas demais para não conhecer 
o açoite que acompanha grátis 
qualquer mecanismo de amor. 

está ali também.

Ano do cachorro

este é um ano manco. nuvens em encaixe às pressas 
como entropia de lençóis, um poente manco. 
talvez tenhamos sobrevivido. há sempre muitas hipóteses: 
um desfibrilador. um vendedor de enciclopédias. 
um voucher para a excursão aos vilarejos encantadores 
(adoecidos de turistas) onde também se ama errado. 
uma farpa. uma lagartixa brincando de estátua. 
em algum ponto talvez se sustente 
o peso faminto do real.

Oráculo

muita pretensão
achar
que sua dor
é coletiva

muita pretensão
achar
que sua dor
é só sua

Sobre o autor: Diego Vinhas nasceu em 1980, na cidade de Fortaleza-CE, é graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará e defensor público. Tem poemas publicados em revistas como Inimigo rumor, Sibila, Mallarmagens, Escamandro, Oroboro, Gueto, dentre outras. Participou de algumas antologias, tais como Todo Começo é Involuntário (Lumme), Antologia de Poesia Brasileira do Início do Terceiro Milénio (Exodus, Portugal), Roteiro da Poesia Brasileira – anos 2000 (Global), CULT - Antologia Poética – Poemas para se ler antes das notícias (ed. Bregantini), Poesia do Dia (Ática) e Tigertail, A South Florida Poetry Annual, Brazil Edition (Tigertail, EUA). Publicou os livros de poemas Primeiro as coisas morrem (2004) e Nenhum nome onde morar (2014, projeto contemplado com uma bolsa FUNARTE de Criação Literária), ambos pela editora 7 Letras (RJ).

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