Angélica Freitas - Canções de Atormentar

Poesia brasileira contemporânea
Angélica Freitas - Canções de Atormentar - Editora Companhia das Letras - 112 Pág. - Capa Ale Kalko (Foto de Capa: Mirror, de Camile Sproesser, 2019, óleo sobre linho) - Lançamento: 05/08/2020.

Em seu terceiro livro, depois dos premiados Rilke shake (Cosac Naify, 2007) e Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify, 2012), a poesia forte e feminina da gaúcha Angélica Freitas amadurece sem dúvida, mas continua afiada e divertida (mesmo quando trata de coisas sérias), sintonizada com a rebeldia dos corações jovens, essa postura tão necessária para confrontar a realidade de um mundo cada vez mais absurdo (a poetisa é legal / o que ela escreve não faz mal // a poetisa tem um blog / onde ela posta canções de rock // a poetisa lançou um livro // "o escaravelho do descalabro" // ela escreveu ajoelhada no milho // a poetisa é boa pra caralho [...]).

Em Canções de Atormentar o arsenal da poeta pode variar da autobiografia até a crônica sobre a vida nas grandes cidades, algumas vezes divertida como em a história mais velha do rock'n' roll (poeta, não / poetisa / que bonita a poetisa / é uma sacerdotisa // a ela, os sabonetes / os perfumes, as loções / a ela, todas as flores / todas as menções // que bonita a poetisa // ela sabe onde pisa / nenhuma banquisa / por mais fina que seja / se rompe sobre seus pés [...]), por outras emocionante, afinal como não se identificar com a beleza do poema ana C., sobre a nossa deusa Ana Cristina Cesar, que tanta falta faz (ana c. me salvou de ser técnica em eletrônica / aos dezesseis / quando entrou de vermelho / em minha vida / e me deixou / aos seus pés // não tive escolha / foi um baita clarão / soco na goela seguido / de cisco no olho [...]).

Mas o poema pode ser simples também como quer a vida (ou não), em alguns momentos não precisar de absolutamente nada, como nos versos ligeiros de em algum café em rosário (que bom / não querer nada / ficar sentada no café / e não querer outro café / nem mesmo água / e de repente / não querer escrever / nem ler / nada, nada / e sobretudo não querer / ir pra rua nem voltar pra casa / e muito menos / avisar alguém / do paradeiro / só ficar parada / no paradeiro / muito quieta / derrubando com as pálpebras / o sistema / (fala mais baixo / senão ele te ouve / e o garçom volta / com a conta) / capitalista / shhh capitalista).

A fina ironia de Angélica Freitas é indispensável para poetas e também para aqueles que nunca escreveram um verso, todos precisamos ser encantados e o (en)canto da sereia está vivo aqui, mesmo que a poeta diga o contrário (ah, se eu fosse uma sereia / teria mais o que fazer / do que ficar cantando pra eles / do que tentar seduzi-los // nem assoviaria, não / ao ver caravelas passar / em seu mar plano, seu mundo quadrado / no máximo um espirro, no máximo um bocejo [...]). Neste livro, o amor não poderia faltar, deixo para vocês a íntegra do poema a sônia, uma linda e sensível lição sobre a beleza que existe nas diferentes formas de amar.

a sônia

(a partir de uma série de fotos de claudia andujar)

nada de errado

esses peitos
esses braços

se alguém quiser saber
barriga, costelas, umbigo

quisemos
tudo

*

querer as pernas
de outra mulher

para depois do amor
ser quadrúpede

alguns dirão
era só
o que nos faltava

*

o que estarás
pensando, azul

de olhos fechados
o que acontece
dentro dessa cabeça

por favor me diz
que pensavas
em coisas banais

(bananas, arraias
coqueiros, praias)

menos em dinheiro

*

diante de ti
reclinada assim
nua

um homem saberia
exatamente o que fazer

e por isso mesmo
erraria
eles erraram

*

amada
vacinada

*

tomaste um líquido
que te deixou assim
acesa quando tudo
se apaga

esta manhã
estiveste na praia?
estás mais loira
do que a lua

*

me deixa por um momento
pensar que esses cabelos
são nuvens

e que deixaste de pensar
porque estás
nas nuvens

*

uma boca se oferece
quantas vezes?
mais uma vez, uma última vez
e desta vez, a outra mulher

*

quantas vezes pode
uma mulher deixar
a casa

e o trabalho virar corpo
e o corpo virar casa

e entender que volta
não existe

*
sônia, escutas?
de olhos fechados

sintonizas
a rádio tosca

transmitindo
entre ouvidos

por que foste
querer isto?

onde estavas
com a cabeça?

*

alguém um dia
te disse
tu és tão bonita
ou tu te olhaste
no espelho
e pensaste
sou tão bonita

que triste ser bonita
ser bonita o suficiente
ser bonita

Sobre a autora: Angélica Freitas nasceu em 1973, em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Publicou dois livros de poemas: Rilke shake (Cosac Naify, 2007) e Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify, 2012), reeditado pela Companhia das Letras em 2017. Sua obra já foi traduzida na Argentina, na Espanha, no México, nos Estados Unidos e na Alemanha.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Canções de Atormentar de Angélica Freitas

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As 20 obras mais importantes da literatura japonesa

As 20 obras mais importantes da literatura francesa

As 20 obras mais importantes da literatura italiana

20 grandes escritoras brasileiras

As 20 obras mais importantes da literatura portuguesa

As 20 obras mais importantes da literatura brasileira