Samuel Malentacchi - Eu sozinho, brincando de vazio

Poesia brasileira contemporânea
Samuel Malentacchi - Eu sozinho, brincando de vazio - Editora Caos & Letras - 150 Páginas - Projeto Gráfico: Cristiano Silva - Arte de Capa: Eduardo Sabino - Lançamento: 2020.

Samuel Malentacchi é um "viciado em estragos", como ele mesmo desabafa nos versos de manual de poesia não ocultista (p. 13), penso que talvez uma definição melhor para o poeta, que também é psicanalista, poderia ser: "um especialista nos desconfortos da alma", especialidade que ele domina muito bem nesta coletânea de poemas desajustados ou inconvenientes, como o ótimo já escrevi sobre isso antes (p. 16): "eu caminho entre os desafotunados, / é um laço feito de sangue e miséria, / um memorial esculpido em lama, / uma obsessão por tudo o que é escuro. / tenho orgulho dos demônios que me devoram. [...]"

O poeta nos ajuda a enfrentar os nossos próprios vazios que também são incontornáveis, como bem resumiu o editor Eduardo Sabino em seu texto de apresentação do livro. Isso significa que não somos forçados a ceder à ditadura da felicidade que nos é imposta nas redes sociais, nem todos precisamos ser vencedores todo o tempo e, talvez, exista uma sedução no sofrimento, como fica explícito em masoquismo das nove (p. 33): "a felicidade / é um golpe fulminante / bem no meio / da fratura que me molda. / estou adicto de misérias. / tudo o que destroça / a minha humanidade / me seduz." 

Eu sozinho, brincando de vazio (p. 22)o poema que empresta o título ao livro, nos remete à melancolia de uma infância "que deveria ser uma lembrança doce", mas é só silêncio e solidão, como marcas de um hematoma antigo. A ideia retorna em cemitério maldito (p. 74): "ainda estou aqui. eu sempre fico. / não há mais ninguém além dos restos. / a sala está dominada pelo que sobrou. / ainda estou aqui. eu sempre fico. / descobri há tanto tempo que / a solidão tem gosto de vácuo / que me habituei a ficar sem ar / em situações de emergência. [...]"

E, assim, trabalhando com os escombros do cotidiano, segue a poesia perturbadora de Samuel Malentacchi, afinal já estamos fartos de manuais de autoajuda, deixo com vocês quatro poemas de autoatrapalhamento.


depois dos trinta

depois dos trinta percebi que não escrevo pra me salvar.

depois dos trinta percebi que poesia é o que consigo fazer

quando não sei fazer mais nada.

depois dos trinta não há mais encanto na destruição,

o que fica é um mal-estar perene,

uma sensação de não se encaixar.

depois dos trinta

percebi que as tragédias são entediantes

e que insistir

talvez

incomode mais.


já escrevi sobre isso antes

eu caminho entre os desafotunados.

é um laço feito de sangue e miséria,

um memorial esculpido em lama,

uma obsessão por tudo que é escuro.

tenho orgulho dos demônios que me devoram.

não me sinto em casa.

não me sinto em casa em lugar nenhum.

apenas entre os desafortunados e furados.

realmente o que me conforta são os furos.

trinta e cinco anos vazados.

me vejo baleado, feito cadáver de chacina.

existo por meus furos.

preciso deles pra escapar do mundo.


eu sozinho, brincando de vazio

desde pequeno leio o mundo com tristeza.

me lembro da casa de minha avó no interior,

deveria ser uma lembrança doce,

mas o que ataca minha memória é

a recordação da parede do corredor

branca e suja de tempo.

eu sozinho, brincando de vazio

e o silêncio de uma infância

contemplada através das rachaduras.

a solidão é um hematoma antigo.


cemiterio maldito

ainda estou aqui. eu sempre fico.

não há mais ninguém além dos restos.

a sala está dominada pelo que sobrou.

ainda estou aqui. eu sempre fico.

descobri há tanto tempo que

a solidão tem gosto de vácuo

que me habituei a ficar sem ar

em situações de emergência.

respiro pausadamente observando a escuridão.

não consigo distinguir a parede ao lado da porta.

olho para a mesa de centro, abarrotada de lixo.

sinto vergonha e nojo,

mas a preguiça é maior que o orgulho aos domingos.

ainda estou aqui. eu sempre fico.

sou o último a apagar a luz,

sou o último a sorrir nas festas,

sou o último a ganhar um abraço nos velórios,

sou o último a dormir em noites desastrosas,

sou o último a não ser salvo pelas manhãs

e ainda esto aqui. eu sempre fico.


cansei de perguntar "o que há de errado comigo?",

cansei de esconder os meus desajustes,

aceito a situação.

eu estou vivo.

ainda estou aqui.

eu sempre fico.


Sobre o autor: Samuel Malentacchi nasceu em São Paulo no ano de 1985. É pscicanalista e poeta. Possui especialização em Semiótica Psicanalítica – Clínica da Cultura. Autor dos livros Autofagia, Miscelâminas, O Abismo é um Instante, Teratoma, Precário de Absolutos, entre outros. Tem poemas publicados em revistas e periódicos no Brasil e em Portugal. É pesquisador da obra do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Eu sozinho, brincando de vazio de Samuel Malentacchi

Comentários

Anônimo disse…
Fiquei um pouco aliviada ao saber que o autor também é psicanalista. Sempre ajuda um pouco a diluir o amargor. Gostaria de ter sido amiga dele na minha infância. Teríamos muitos o que compartilhar!
Alexandre Kovacs disse…
Também me identifico com essa infância solitária. Obrigado por comentar!

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