Sandra Godinho - Tocaia do Norte

Literatura brasileira contemporânea
Sandra Godinho - Tocaia do Norte - Editora Penalux - 318 Páginas - Capa e Diagramação de Guilherme Peres - Lançamento: 2020.

Em seu mais recente lançamento, Sandra Godinho nos apresenta um romance de cunho regionalista com a reconstituição de um período histórico ainda pouco conhecido do grande público: a época da construção da rodovia BR-174, conhecida como Manaus-Boa Vista, durante o regime militar, mais especificamente em 1968, ano do AI-5. Nessa época, infelizmente pouco diferente dos dias atuais, a floresta amazônica era considerada como uma força a ser conquistada em nome dos interesses econômicos de tradição colonial extrativista e os povos indígenas inimigos a serem vencidos a qualquer custo, caso não se mostrassem eficientes as estratégias de evangelização em curso.

O livro tem como base a história real da expedição do padre italiano Giovanni Calleri que foi enviada pelo Governo para pacificação dos índios Waimiri-Atroari durante a construção da estrada, uma expedição que tinha originalmente objetivos humanitários, mas, devido ao não cumprimento das condições acertadas e falta de apoio das autoridades, terminou em tragédia com o massacre de seus integrantes em um episódio que nunca foi totalmente esclarecido, assim como o posterior genocídio de grande parte dos Waimiri-Atroari a partir de helicópteros que sobrevoavam as aldeias espalhando substâncias químicas venenosas e detonando explosivos, atrocidades cometidas em nome do progresso.

O romance é narrado do ponto de vista do protagonista João de Deus, um jovem de dezessete anos que, devido a conflitos internos em seguir a vontade dos pais e se dedicar à vida religiosa, decide se afastar do seminário e acompanhar a expedição do missionário Giácomo Chiarelli. A narrativa dos anos de formação do protagonista em uma região pobre de Manaus é um dos pontos fortes do romance: "Nasci no meio da água e do mal cheiro. E da merda, a cidade flutuante. [...] Cada pinguela, catraia ou banzeiro que ondulava o Negro trazia um cheiro de liberdade pelas águas. A cidade flutuante era uma bolha de residências desordenadas na superfície do rio, quebrando a monotonia dos caminhos andantes, habitados por seres que não desistiam de viver, tipos que sabiam escorrer pelas águas, tipos como eu que se acendia ao avistar o mingauseiro ao final da tarde, deslizando o rio com sua canoa." 

"Eu saía cedo, rumo à escola, carregando minha maleta escolar pela mão, mas na verdade, na primeira oportunidade, eu fugia para gazetear pelas escadarias da Matriz, atravessava a praça e me dirigia para os lados dos armazéns até avistar Lívia com sua mãe depois das aulas, ela já botando corpo, pele azeitonada de perdição, cabelo liso de noite que chegava a quebrar o peito de muito homem formado. Eu ainda não era um desses, apenas um pirralho de dez anos que insistia em apressar os passos com pernas curtas, em reparar nas pessoas que iam comprar peixe, nos retalhos de conversa à beira do cais, nos dejetos oleosos deixados pelos navios e pelas catraias que empesteavam a água. [...]" (p. 30)

Neste livro, Sandra Godinho resgata um delicioso regionalismo que tanta falta faz na nossa literatura contemporânea, na qual os autores normalmente se limitam a reproduzir um mundo tristemente globalizado. É bom que se diga que esta visão regional se reveste de um realismo por vezes brutal e de importante denúncia social, um regionalismo em que "Boto não havia para encantar, só as águas negras e as barrentas". Vale a pena conhecer Tocaia do Norte, uma obra importante e recomendada, tanto no que se refere ao valor literário quanto à importância histórica do tema apresentado, afinal, quem sabe conseguimos aprender com o passado.

"Em silêncio e sem que me vissem, vi-me perdido de caminhos, na suposição incontestável de que estava no meio de uma emboscada. Eu, que nem mesmo queria estar ali, acompanhando o padre. Retomei o caminho, de volta ao Igarapé, evitando os galhos retorcidos na altura do rosto, somente o húmus macio derramado no solo a servir de apoio para as pernas que tremiam. Ouvi os gritos das mulheres, estridentes e cortantes. Corri, ainda vislumbrando o rosto de Chiarelli na mente que desmiolava a cada passo." (p.199)

Sobre a autora: Sandra Godinho, nascida a 27/07/1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas de contos. Publicou O Poder da Fé (2016), Olho a Olho com a Medusa (2017), Orelha Lavada, Infância Roubada (2018), agraciado com Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019) e semifinalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (Escritor do Ano 2019), O Verso do Reverso (2019), ganhou o Prêmio de Melhor Conto Regional da Cidade de Manaus de 2019, Segredos e Mentiras (inédito), semifinalista no Prêmio Uirapuru 2019, Terra da Promissão, publicado (2019), e As Três Faces da Sombra, um dos ganhadores do concurso da Editora Fora da Caixa, publicado em 2020.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Tocaia do Norte de Sandra Godinho

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