Cesar Garcia Lima - Bastante aos gritos

Poesia brasileira contemporânea
Cesar Garcia Lima - Bastante aos gritos - Editora 7Letras - 124 Páginas - Ilustração de capa: Danilo de S'Acre, Retrato de homem em rosa, 2020 - Lançamento: 2021.

Em tempos sombrios a poesia nao pode silenciar, seja exercendo o papel de oposição às fake news, fenômeno recorrente nas redes sociais, como no oportuno poema "Fez que nius" que nos lembra como a política verde e amarela às vezes dá vontade de gritar: "excelências prontas para defender / a própria mediocridade / em dinheiro vivo"; ou no contraste entre a dura realidade cotidiana e a lembrança do pai, eternizado na ausência, como nos sensíveis versos de "Duplo", memórias de um passado já distante: "bem antes desses dias nublados, / em que o mal se confunde / com mandato".

"Bastante aos gritos" é o criativo título do quarto livro de poemas do acreano Cesar Garcia Lima, poeta, professor e jornalista, dividido em cinco partes: “Agora interminável”, “Nome aos boys", “Personas”, "Versão impressa”"As cidades da memória” e “Autorretrato em fuga”, cada uma dessas partes reunindo poemas independentes na forma e conteúdo, mas sempre comprovando que o lirismo e a ironia não são incompatíveis ao fazer poético, principalmente quando é necessário falar sobre verdades incômodas.

Por exemplo, em "Agora Interminável" a realidade se impõe quando o poeta escreve versos sobre a exploração trabalhista dos entregadores de aplicativos, o título "Slave eats" nos alerta que escravo também precisa comer: "Paulo Roberto está com fome / e não tem como pagar / o que carrega." Já em "As cidades da memória", o poeta demonstra como as cidades mais lindas são aquelas que não existem na realidade, mas sim transformadas pela memória, como é o exemplo de "Roma Termini": "palavras cruzadas onde é proibido fumar / e todos fumam / falam da guerra e de como fugir / e é impossível a escuta / quando os trens dão partida / e os alto-falantes não param de gritar"

Fez que nius
(Agora Interminável - p. 24)

Se você ler
sobre política
verde e amarela
e der vontade de gritar
entrar no texto
fazer justiça
com as próprias mãos
lembre-se:
é tudo fez
fez que nius
elas estão em todo lugar
há vários investidores
interessados
devedores patriotas do fisco
atrizes cientes de seu patrimônio em gado
e botox
excelências prontas para defender
a própria mediocridade
em dinheiro vivo
cartórios carimbando sua vida
em looping
maridos infiéis piscando
para meninas distraídas porque
é Brasil galera
terra da felicidade
mame-o ou deixe-o

Slave eats
(Agora Interminável - p. 26)

Paulo Roberto está retirando
seu pedido que 
custa mais caro
do que deveria.
Paulo Roberto está de bicicleta.
Paulo Roberto está a caminho.
Paulo Roberto é jovem, negro,
carioca.
Paulo Roberto arrumou
esse trabalhinho de entregador
e não vai ter carteira azul
nem verde amarela.
Um parente de Paulo Roberto
foi escravizado na África
e assim sua jornada sem fim
começou.
Paulo Roberto está com fome
e não tem como pagar
o que carrega.
Previsão máxima de chegada:
09:15 p.m.
00:00 minuto de distância.
Encontre Paulo Roberto na porta.
Seu pedido foi entregue.

Roma Termini
(As cidades da memória - p. 89)

A maior de todas as coragens
é o ócio 
um trem esperando para partir
a ferroviária de Roma
cheia de gente correndo
como piolhos nos cabelos da minha avó
mentir é tão fácil
quanto percorrer a segunda classe
a bêbada o cego com cachorro
o japonês com seu guia de turismo
os mochileiros o rapaz gordo trocando de roupa
palavras cruzadas onde é proibido fumar
e todos fumam
falam da guerra e de como fugir
e é impossível a escuta
quando os trens dão partida
e os alto-falantes não param de gritar

Duplo
(Autorretrato em fuga - p. 111)

Meu pai já não me antecede
nossas idades se igualam
na pele fina
na persistência
na capacidade de mudar de assunto.
– Você se esforça até demais, me disse ele,
bem antes desses dias nublados,
em que o mal se confunde
com mandato.
Já não me esforço tanto.
Dedico algumas horas a ele,
em seus dias tardios,
em seu ato falho de se levantar 
quando a vontade é de dormir
um pouco mais.

Sobre o autor: Cesar Garcia Lima nasceu em Rio Branco (AC) em 28 de janeiro de 1964. É autor de Águas desnecessárias (Nankin, 1997), Este livro não é um objeto (edição do autor, 2006) e Trópico de papel (7Letras, 2019), todos livros de poemas. Ainda em 2019, pela e-galáxia, reeditou Águas desnecessárias em e-book, com versões em português, inglês e espanhol. Entre 1991 e 1997, em São Paulo, participou do Cálamo, grupo de criação e pesquisa literária. Na universidade, cursou doutorado em Literatura Comparada (UERJ), mestrado em Literatura Brasileira (UFRJ) e bacharelado em Comunicação Social/Jornalismo (Cásper Líbero). Como diretor e roteirista de documentários, realizou Soldados da borracha (2010) e Onde minh' alma quer estar (2015). Vive no Rio de Janeiro.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Bastante aos gritos de Cesar Garcia Lima

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