Andrea Abreu - Pança de burro

Literatura em língua espanhola
Andrea Abreu - Pança de burro - Editora Companhia das Letras - 192 Páginas - Tradução de Livia Deorsola - Capa: Elisa von Randow - Lançamento: 2022

O premiado livro de estreia de Andrea Abreu é narrado por uma protagonista de apenas dez anos, nomeada por seu apelido, Shit, assim como a autora nascida em Tenerife nas Ilhas Canárias espanholas, onde é ambientado o romance, em uma região montanhosa do interior, isolada do restante da ilha e próxima a um vulcão com risco de erupção. Outra característica do local é o fenômeno meteorológico chamado "Pança de burrro", que empresta o título à obra: nuvens pesadas e baixas que formam uma espessa camada sobre a terra, um cenário árido, longe das famosas praias e balneários de Tenerife, maior ilha do arquipélago das Canárias.

Shit tem uma melhor amiga chamada Isora e, durante as férias escolares, ambas compartilham a descoberta da sexualidade entre as brincadeiras típicas da idade e outras nem tanto. Isora é mais madura, órfá de mãe e sem notícias do pai, vive com a avó autoritária, dona de uma venda do bairro. Neste ambiente isolado, como uma ilha dentro da ilha, em uma sociedade pobre e machista, a autora explora a ambiguidade das personagens, oscilando entre a ingenuidade e a precoce crueldade, por meio de diferentes sentimentos que norteiam a obsessiva relação das meninas: amizade infantil, desejo sexual, inveja e romantismo se alternam.

"Feito um gato. Isora vomitava feito um gato. Hurgh hurgh hurgh, e o vômito se precipitava na privada para ser absorvido pela imensidão do subsolo da ilha. Isso acontecia duas, três, quatro vezes por semana. Ela me dizia sinto muita dor aqui, e apontava para o meio do tronco, bem no estômago, com o seu dedo gordo e moreno, com a sua unha como se tivesse sido mascada por uma cabra, e vomitava como quem escova os dentes. Puxava a descarga, abaixava a tampa e com a manga da blusa, uma blusa quase sempre branca com estampa de melancia com sementes pretas, enxugava os lábios e continuava. Ela sempre continuava. [...] Eu teria seguido ela ao banheiro, à boca do vulcão, com ela eu teria subido até ver o fogo adormecido, até sentir o fogo adormecido do vulcão dentro do corpo. E eu a segui, mas não fomos ao banheiro do refeitório, e sim ao do segundo andar, onde não tinha ninguém, onde diziam que morava uma garota fantasma que comia o cocô das meninas que copiavam a lição de casa." (p.7-9)

Um ponto bem explorado no romance é o contraste entre o cotidiano de uma região rural e a influência da chegada da internet, como na hilária cena de Isora se conectando no "méssinger" com um anônimo que se masturba na frente da câmera, tudo isso nas aulas de informática no centro cultural do bairro, quando as duas driblavam a atenção do professor: "Embora ele soubesse que Isora e eu fazíamos uma borda de joaninha no Word e já entrávamos direto no méssinger, ele não nos dizia nada e, se nos via com as janelinhas do méssinger abertas, fingia que não estava vendo e continuava explicando  mais coisas do Word."

"Na carteira do colégio, assim, como se esfregam os animais na merda, nas rãs em decomposição, assim a gente se esfregava na carteira do colégio. E as crianças frequentavam a sala de aula, que era uma sala pequena, com um só professor para dois cursos, e ficávamos nós, as crianças do primeiro ano, do lado esquerdo da sala, e as crianças do segundo ano do lado direito da sala e o professor explicava um pouquinho a cada um dos grupos e nós escutávamos as explicações dos do curso dos mais velhos. Por isso aprendíamos coisas que ainda não era hora de aprender e sabíamos dividir números por três e nos esfregar na carteira, como os porcos no esterco, esterco de cavalo. Depois ficávamos fedendo a perereca, a sala toda fedia a perereca e as roupas das outras crianças fediam a perereca e o professor e as mãos do professor também, porque ele pegava o giz que a gente pegava." (p. 91-2)

A autora busca reproduzir a oralidade em sua estrutura narrativa, pontuada por um "lirismo escatológico" como bem definido na apresentação de Ana Guadalupe e ainda utilizando algumas arriscadas passagens experimentais, como por exemplo no longo fluxo de consciência da protagonista, destacado no trecho abaixo, sem nenhuma pontuação. Algumas críticas têm comparado o romance com A amiga genial, parte da tetralogia de Elena Ferrante que tem como base a amizade de Elena Greco e Lila Cerullo (Lila e Lenu) ao longo da vida, mas a comparação é infundada no meu entendimento, tanto no conteúdo quanto na forma dos livros.

"um buraco na terra cavar com as unhas e a terra e o sangue das unhas dentro dos ouvidos se enterrar talvez o melhor fosse se enterrar como os mortos e ser uma coisa debaixo da terra se transformar numa raiz de uma mata velha em alguma coisa quase comestível e por engano ser comida por uma lagarta por um animal doente com as tripas furadas cheias de vermes por fora podre como um coelho com raiva e sem mãe nem pai e com gosto de veneno das bananeiras no céu da boca agrotóxico talvez fosse melhor pedras balançando sobre a cabeça como um maracujá partido com a ponta dos molares arrancar os dentes um a um com uns alicates e colocá-los todos todinhos num prato com maionese por cima todos enfileiradinhos como papas locas e se alimentar dos próprios dentes feito um cachorro comendo a própria merda se alimentar de si mesma até virar do avesso feito uma meia até desaparecer até que os dentes da gente comessem a gente começando de dentro depois botar os intestinos pra fora pelo cu como uma cabra com o útero solto e fazer um colar de caracóis com os intestinos e pensar em dar o colar de presente pra Isora pensar em dar a ela o suquinho da bílis que é a última coisa que sobra pra gente quando não sobra mais nada" (p.156)

Sobre a autora: Andrea Abreu nasceu em 1995 em Tenerife, nas Ilhas Canárias. Pança de burro (2020) é seu primeiro romance, publicado em mais de vinte países, eleito o melhor livro de estreia pelo Festival de Chambéry e vencedor do prêmio Dulce Chacón. Abreu fez parte da edição dos melhores escritores com menos de 35 anos da revista Granta.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Pança de burro de Andrea Abreu

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