Paulo Abe - O livro dos tradutores

Literatura brasileira contemporânea
Paulo Abe - O livro dos tradutores - Editora Penalux - 98 Páginas - Editoração eletrônica e capa: Karina Tenório - Lançamento: 2022.

Os contos de Paulo Abe têm inspiração no estilo refinado de Italo Calvino, Jorge Luis Borges e Umberto Eco, autores que souberam criar narrativas nas quais a própria literatura é um tema recorrente, assim como a utilização de uma atmosfera mágica que mistura sonho e realidade. De fato, já no conto de abertura, que empresta o título ao livro, nos deparamos com uma fábula sobre a leitura e o infinito e impossível ofício dos tradutores: "Akira Kageyama não foi o primeiro e tampouco o último a traduzir as grandes obras de Gastón de la Vega." Um texto que, ao descrever as múltiplas traduções de um mesmo clássico, em uma espécie de "Babel de um único escritor", representa uma homenagem a Borges, leitor extraordinário e compulsivo.

Já em O livro da guerra são os ecos de Calvino que prevalecem ao longo da narrativa de um general chinês que viaja pelo Oriente Médio e Europa, durante muitos anos, em busca dos segredos da coordenaçao e comando da máquina de guerra. Neste conto, sem tempo e espaço definidos, no qual "diversos povos da grande região do que hoje chamamos de China disputavam a fronteira do que um dia se chamaria Mongólia", a ausência do general acaba, por uma grande ironia, interrompendo a rotina de destruição dos países vizinhos e redistribuindo as reservas de ouro e alimentos dos exércitos para o povo. No entanto, um final surpreendente demonstra como os homens seguem uma religião que tem uma coisa em comum, o deus da guerra.

"Durante gerações, diversos povos da grande região norte do que hoje chamamos de China disputavam a fronteira do que um dia se chamaria Mongólia. Era tido como consenso entre ambas as partes que guerrear fosse o núcleo de suas identidades nacionais. Não tanto a língua, a religião ou mesmo seus rostos, mas a arte de destruir o vizinho que unia tantos povos distintos. Dizia-se nas duas partes que o ódio ao outro lado era ensinado antes sequer de ler e escrever. E, de fato, poucos sequer os aprendiam. Toda a população era voltada à espada e às artes envolvidas no compromisso da guerra. / Entre tantos líderes das diferentes nações na região chinesa, um se sobressaía. Ele não era um rei ou sequer da nobreza, ainda que todos esses homens fossem guerreiros. Em unanimidade, há três décadas, o general Liu era escolhido para liderar o grande exército contra os mongóis. Toda batalha era travada em seus estepes largos e secos. A primeira, para ambos os lados, já era a locomoção até lá. Pouco havia de mantimentos no caminho, de modo que grande parte de seu exército era para manter os próprios soldados longe da fome. Toda essa logística da guerra era a expertise do grande general. Poucos ou mesmo ninguém conseguia pensar em todas as vertentes, frentes e sistemas envolvidos numa guerra." - Trecho do conto O livro da guerra (pp. 15-6)

No sensível O livro do esquecimento, uma idosa começa a perder toda a memória e somente a sua pequena neta, Maja, de cinco anos tem paciência para conversar com ela por horas. A menina resolve criar um livro, por meio de desenhos, das coisas esquecidas por sua avó e esta inusitada relação resolve os problemas da família por algum tempo. Contudo, as duas estão prestes a enfrentar um grande perigo quando a menina resolve levar a avó para visitar o rio que passava próximo à casa, sempre presente nas poucas lembranças de sua companheira mais velha.

"Num dado momento, porém, sua avó não só esquecia as coisas, mas se esquecia do que era segredo e o que era de conhecimento público. Falava abertamente sobre assuntos que nunca tocou com ninguém. Todos a ignoravam e deixavam essa nova fase a cargo daquela menina de cinco anos. Ela tentava desenhar cada nova informação que tinha em seu livro, mesmo que não soubesse que eram informações que não deviam ser compartilhadas. Uma delas, no entanto, despertou a atenção de Maja. Sobretudo pelo número de vezes que sua vó lembrava daquilo mesmo em esquecimento. Era uma memória de sua juventude, de quando nadava no rio que cruzava o país e sua região. / Aquilo fascinou a criança, pois desde cedo sabia que mulheres eram proibidas de nadar. Para Maja, o rio, que atravessava todo o seu país e era símbolo da bandeira de sua nação, não era senão uma imagem de água correndo em um canto do terreno de seu país. Mas uma água apenas para homens. Por isso sua vó dizer que tinha tantas lembranças boas naquele rio, que havia nadado muito nele, era algo emocionante pra a neta. Desenhou diversas vezes o rio como o concebia para sua vó. Ela sempre olhava maravilhada para o borrão azul e repetia seu mantra: 'Quantas boas lembranças nesse rio'" - Trecho do conto O livro do esquecimento (p. 35)

Em O livro do nome de Deus, Abraham é um judeu ortodoxo em Jerusalém, estudioso da Torá e dos mistérios da Cabala, que fica obcecado por encontrar o nome de Deus, tornando-se uma personalidade reverenciada na região. Mais uma fábula sobre a força das palavras: "As quatro letras poderiam ser pronunciadas de quatro formas pela linguística hebraica: Iahveh, Iahvah, Iehvah, Iehveh. Isso se houvesse vogais, mas não havia. Então, teria apenas valor numérico e simbólico?" No conto O livro dos sonhos, um menino busca alívio para seus pesadelos tentando se confessar com um padre que já trabalhava há muitos anos na rotina de uma fábrica da fé.

"'Padre, eu tive aquele sonho de novo', começou dizendo o pequeno Pietro na escuridão do confessionário. Ele não havia dormido depois que acordou. Tal era o efeito de seus cada vez mais frequentes sonhos, a insônia. Há semanas havia visitado o padre não para confessar no sentido estrito do catolicismo, mas para se abrir a alguém que cria ter um maior saber das coisas de outros mundos. Para ele, tudo o que estava além deste era uma coisa só, o desconhecido, e o padre de sua cidade era o único mais próximo da fronteira entre os dois mundos. Não havia psicólogos ou sequer assistentes sociais na pequena vila no interior da Itália, onde vivia. As pessoas resolviam seus problemas apenas de três formas: bebendo, trabalhando ou se casando. / 'Que sonho era este mesmo?', o padre respondeu, ainda que nada tivesse respondido e nem procurado nas profundezas de sua mente pela memória daquele menino. Já estava muito velho e custava-lhe continuar com a rotina de sua igreja, mas fazia-o, mesmo que sem muito ímpeto, como a trabalhar numa fábrica – da fé." - Trecho do conto O livro dos sonhos (p. 69)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Paulo Abe nasceu em São Paulo e tem 34 anos. É doutorando em Filosofia pela USP. Já publicou quatro livros, dentre ele três romances e uma coletânea de contos, Um corpo divisível (Penalux, 2019), que foi vencedor do Programa Nascente USP e finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura em 2020. Em seu quinto livro, O livro dos tradutores, reúne um conto vencedor do 3º prêmio SFX de literatura, o livro do nome de Deus, e dois finalistas do Prêmio Off Flip 2020 e 2021, com os contos O livro dos tradutores e O livro das fronteiras.

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