André Balaio - A última noite de José Wilker
Não há como resistir ao inusitado título deste mais recente lançamento do pernambucano André Balaio e – fisgados inicialmente pela curiosidade – avançarmos em cada um dos contos até o final. De fato, o ótimo título é um exemplo do estilo fantástico do autor sempre associado com uma narrativa bem-humorada, mesmo que as situações descritas nem sempre nos permitam rir. Nesta antologia, diferente de seu livro anterior, Quebranto, que apresentava textos de cunho regionalista, inclusive com citações a lendas populares do interior do Recife, o cenário é mais urbano, principalmente no conto que encerra e empresta o título ao livro, A última noite de José Wilker, no qual André Balaio trabalha com a perturbadora proximidade entre ficção e realidade na zona sul do Rio de Janeiro, mais especificamente o bairro de Ipanema e sua vida noturna.
O conto Gabriel, é uma sátira social que mostra a influência das religiões no cotidiano de uma família "normal", afetada radicalmente quando a diretora da escola chama os pais para uma conversa, tendo como motivo um desenho feito pelo pequeno Gabriel: "Precisou se afastar um pouco para enxergar o desenho. Eram quatro figuras de mãos dadas: um homem calvo de terno e gravata azul, uma mulher de vestido rosa, um menino de camiseta azul e bermuda vermelha e um ser magro, todo vermelho, de chifres e rabo pontiagudo. Embaixo, a legenda com as letrinhas precárias: Papai, Mamãe, eu, Ele." Já em Ruas e Rodas encontramos a divertida imagem do "fuscão preto" que vem auxiliar o protagonista em suas desventuras amorosas, imperdível.
"Um som de guitarra distorcida explodiu na rua, espichei o pescoço e vi o fuscão preto rebaixado com roda de liga leve de alumínio, pneu aro dezoito, parado no meio da via como se dela fosse o dono. A bateria entrou, potente e atroz, a música explodiu em milhares de watts de aspereza, os faróis strobo, acima do para-choque cromado, piscavam no mesmo ritmo. O rosto maquiado de Jandira se alumbrou ao perceber o fuscão enquanto uma voz esganiçada gritava em inglês dos woofers, cornetas e twitters como se estivesse me xingando. Tentei entender. Chegou o refrão, o coro gritando highway to hell, autoestrada para o inferno. O carro levará minha noiva pela autoestrada para o inferno. A porta se abriu e Jandira entrou. O raio colado ao capô incandesceu e projetou sua luz vermelha no céu. O ronco autoritário anunciou o arranque, mil e seiscentas cilindradas de ignorância, o fuscão se foi. Segui devagar para não ser descoberto e porque o carro de Juvenal era mesmo lento. O fuscão dobrou na rua do Perpétuo Socorro, enfiou-se na travessa da Purificação e estacionou na praça do Divino Amor." (pp. 57-8) - Trecho do conto Ruas e Rodas
Já O Arremate é uma prova de que o encontro do futebol com a literatura, apesar de pouco explorado pelos escritores nacionais, salvo honrosas exceções, tem tudo para der certo, principalmente no caso da inspiração vir de um time com a tradição do Botafogo do Rio de Janeiro, dono de um legado supersticioso sem igual, time do qual, diga-se de passagem, este resenhista é um torcedor declarado. Neste conto, somos apresentados a um misterioso alfaiate que fez parte do vitorioso time de 1989, campeão carioca, depois de um longo período de 20 anos sem títulos. Até este ponto, apenas reminiscências de um velho jogador. No entanto, tratando-se de André Balaio, logo percebemos que a história tem como base fatos reais, mas se encaminha para um desfecho sobrenatural.
"Me aferiu da nuca à cintura, entre as pontas dos ombros, verificou o comprimento do meu braço, enlaçou o tórax, passou a fita mais justa em torno do cós. No fim, anotou tudo de memória, medida por medida, numa caderneta. Tirou da gaveta uma pasta classificadora e deslizou os dedos finos pelos pedaços de tecido colados às páginas. Discorreu sobre as vantagens do linho e da lã sobre o poliéster e a microfibra. Aceitei o linho, não por convencimento, mas porque a expressão "terno de linho" me pareceu mais natural que "terno de poliéster". Marquei de buscar a roupa na quarta-feira, o que daria tempo, se preciso fosse, para mais alguns ajustes antes do casamento. Enquanto me despedia, percebi um pôster no canto da sala, Botafogo Campeão Carioca de 1989. Não devia ser comum encontrar um time de futebol numa alfaiataria, ainda mais de fora do estado. Ele colocou a fita métrica sobre a mesa e ficou ao meu lado. Observamos o pôster como quem contempla um quadro num museu." (p. 66) - Trecho do conto O Arremate
Afinal, que relação poderia haver entre a morte de José Wilker com um professor de meia-idade em crise no Recife? O conhecido ator que faleceu de um infarto fulminante após jantar com a namorada, numa madrugada do sábado para o domingo, no Rio de Janeiro, torna-se uma espécie de obsessão para o protagonista, Herculano Pimentel, que decide aproveitar um congresso na cidade do Rio para reproduzir todos os detalhes da fatídica noite. Em uma espécie de "plano sequência" literário como bem destacado na introdução de Débora Ferraz, acompanhamos Herculano em sua trajetória para se transformar em José Wilker por uma noite. Sem dúvida, um roteiro desafiador.
"Com empenho ostensivo, o repórter escolhe populares para entrevistar no meio do alvoroço. Uma garota de cabelo azul aperta o caderno contra o peito ao relembrar um personagem. À medida que fala, relaxa o braço e deixa entrever, na camiseta, a logomarca de um sorriso. Um homem de pescoço largo e orelha deformada pelo jiu-jitsu deixa escorrer uma lágrima ao recordar o último papel na novela. A senhora de cabelos brancos e vestido florido evoca seu personagem em Dona Flor e seus dois maridos. Por um momento, as rugas da testa se desfazem para um sorriso raro, e contrastante com as fisionomias em volta, lhe ilumine o rosto. Um rapaz magrinho começa a relembrar algumas cenas sem saber o que fazer com as mãos nem onde fixar os olhos. Talvez ele nem tenha ido ao velório; estava passando na calçada em direção à padaria e foi chamado pela reportagem. Felomelal, ele diz. O tempo ruge e a Sapucaí é grande. Há malas que vêm de trem. São bordões do ator numa novela entoados com a mesma graça. As pessoas se juntam para assistir. Aplaudem o rapaz, até assoviam, como se estivessem saudando José Wilker. O encanto resplandece, atravessa a lente da câmera, passa pelos cabos de sinal, transmite-se nas antenas espalhadas pelas cidades e chega à tela da TV." (pp. 85-6) - Trecho do conto A última noite de José Wilker
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