Alexei Bueno - A noite assediada
Um livro difícil de definir: poemas em prosa ou contos poéticos? Na verdade, isso não importa. Deixar-se levar pelas imagens e reflexões de Alexei Bueno sobre a beleza e o horror do cotidiano, a passagem do tempo, enfim a própria vida, isto sim é importante. Por exemplo, OS VELHOS, reproduzido integralmente abaixo, é um verdadeiro soco no estômago, uma composição que somente um artista maduro poderia ter escrito, verdadeiramente lindo e doloroso ao mesmo tempo. Não me canso de ler e reler essa composição que parece resumir a tragédia de se encontrar em uma idade na qual "tudo ficou atrás, e tudo está atrás. Atrás estão, mais do que tudo, os corpos amados, os adorados corpos, poças únicas do esquecimento. [...]"
A obra reúne textos escritos em duas épocas distantes, em 1982, aos 19 anos de Alexei Bueno, e depois em 2021 e também 2022, um hiato de quarenta anos portanto, no qual muita coisa mudou, contudo não há prejuízo na consistência da produção literária entre esses períodos. Colocados lado a lado, os poemas formam uma estrutura única e coesa ao refletir sobre a condição humana e a necessidade de continuar existindo, apesar de tudo: "A noite está assediada, e cairá. Como Jericó, como Troia, como Tiro, como Cartago, a noite cairá. Fora, dando à luz um tremor que apavora a terra, as rodas da quadriga da Dor avançam, invulneráveis, e o seu carro – para os que nunca o perceberam – é o mesmo carro do Sol Invicto."
OS VELHOS(17-11-2021)
"Os velhos, ruínas de crianças, exploradores diários da Lei da Gravidade, ah, seus passos ridículos, a sola de um pé de sapato que não ultrapassa a marca abstrata do bico do outro pé. Remelas nos olhos, e também uma ameaça de lágrimas, a mesma umidade das comissuras das bocas sem dentes, que a gargalhada desertou.
Diplomas ambulantes do embuste, monumentos recurvados e lentos da traição. Cada nascer do sol é para eles uma ofensa, cada relâmpago que cospe a tempestade uma seta certeira do escárnio. Mas como andam. Como os ponteiros, como os pavorosos redemoinhos marítimos, traçam linhas concêntricas a seus jazigos, cada vez mais curtas.
Esquecem-se? Que glória seria esquecer. A memória crece dentro deles, como um tumor, um feto monstruoso, com três cabeças, com quatro braços talvez, como o Senhor da Dança. Roubaram-lhes o esquecimento. O farol do vivido cintila, pisca, cada vez mais perto, o farol virado de cabeça para baixo, que não indica o recife ou o cabo a evitar, mas a angra de outrora obrigatoriamente evitada para sempre.
Eles não andam para trás, ou tropeçariam, o grande desastre, eles só andam para a frente, transparentes, e tudo ficou atrás, e tudo está atrás. Atrás estão, mais do que tudo, os corpos amados, os adorados corpos, poças únicas do esquecimento, esquecimento, esquecimento... Ah, esquecer de tudo, mas aos pobres velhos ridículos não é permitido esquecer mais nada."
OS ELEITOS(1982)
"A derradeira visão da porta do hospício. Alguns homens passam espalhando frases que não podem ser ouvidas. Os estabelecimentos estão fechados, ou em vias de fechar. As rodas dos automóveis gemem como rios sem destino em direção às bancas. Os cortinados se acendem e o pó cai dos lustres das mansões alheias. Sabe-se que os parasitas têm vida. Lá, sobre a luz estranha do último pavilhão, voam pássaros, voam legiões e círculos de pássaros como tentando ler alguma coisa. Os olhos humanos, presos nas vozes e nos vidros, não percebem. Apenas aqueles que já conheceis estão olhando, estão profundamente olhando, e as suas mãos seguram uma pedra. Rola uma música de cima, mas esta música não vem de lugar nenhum. O portão espera. As aves, apenas as aves, margeiam a verdade."
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