Tito Leite - A palavra em seu deserto
O sagrado e o profano convivem em harmonia nas três partes que compõem esta antologia de poemas: "A loucura é bilíngue", "A lua guarda um segredo violáceo" e "O agora é o já e o ainda não". De fato, Tito Leite, Filósofo e Monge Beneditino, surpreende pelo modo "selvagemente santo de amar" (Devires Confusos - p. 39), neste caso, inadequação parece ser uma palavra-chave para entender o homem por trás desses versos: "Para o poeta, a liberdade / é o solo de uma cigarra / acompanhada por uma gaita. // Acontece que a música cessa, / o dia fenece e a estátua / de um coronel permanece. // O poeta lê Drummond. / Cansado de um mundo / que amanhece em falta, // pergunta ao pai: é crível / fazer brotar / uma flor no mercado? // Feito uma tartaruga / sem casco. O poeta e o pai, / ambos fora do lugar." (Inadequação - p. 58)
Assim como em seu livro de poemas anterior, Aurora de Cedro (7Letras, 2019), nos deparamos com o cuidado de Tito Leite na lapidação da palavra exata, associada com a sonoridade e a força da imagem: "[...] Os físicos escrevem / com uma caneta Bic azul: / a luaviolácea cabe / num buraco de minhoca. / Muitas vezes, a melhor / palavra é a boa imagem." (O homem da caneta azul - p. 61). Quem sabe, sagrado e profano não sejam posições tão antagônicas, quando percebemos que a religião e a arte não deixam de ser expressões do mesmo espírito humano, monástico ou nômade e, portanto, David Bowie e Lou Reed podem ser citados no silêncio do claustro de um mosteiro. Deixo com vocês alguns exemplos de que: "No poema // nenhuma / luta foi em vão, // há sempre / um contentamento, // uma garota / que amou, // um coração atento, // um repente / de momento // e uma semente / que brotou." (Ofício - p.52)
O OUTRO
(A loucura é bilíngue)
Eu canto a ovelha
e o lobo,
a serpente que engole
a própria cauda
e o fim sábio
do poeta tolo.
Eu canto o limo
e o mar aberto,
a madrugada
dos poetas e o tiro seco
dos filósofos.
Eu canto o estrondo
da trombeta,
o anjo em pele de meteoro
e o monge que titubeia
entre o louco e o santo.
Eu sou o outro
que me falta
e são tantas coisas inacabadas
que me tiram o sono:
o viajante sem destino
que pega um barco
para Colômbia
e no trânsito dos planetas
atravessa
o sinal vermelho;
o místico
que doma a solidão
ou faz da serenidade
uma irmã;
um livro empoeirado
na gaveta
com Gottlob Frege
fanado da estrela
da manhã;
uma pequena cidade
que morei
e não me despedi;
o sonho que perfura
minha tarde e por ele
perdi a gravidade.
Eu sou o outro
que me falta
e são tantas coisas inacabadas
que me completam
e ainda perco o juízo,
com saudade
de quando éramos
melhores.
MEMENTO
(A loucura é bilíngue)
Se o tempo
não deteriorasse
eu o chamaria
eternidade.
Uma colheita,
uma foice.
O pássaro nasce e já é voo.
SUBLIME
(A lua guarda um segredo violáceo)
Acredito
que nos poemas
de amor
um rei bailarino
foge do senso e reza
com o corpo.
A exixtência
e o âmago
são sacramentos.
Declamo-te
com címbalos
e língua de fogo.
SPINOZA
(O agora é o já e o ainda não)
Não adianta
lutar contra
o que não
somos páreos.
Sabedoria
é domar
os ventos
contrários.
POLITEIA
(O agora é o já e o ainda não)
Não faço diplomacia
com os chacais.
Eles vestem fardas
para suas vergonhas
não serem vistas.
Não se vender
é o grande milagre.
Mas ninguém
atravessa os anos
com os pés enxutos.
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