Tito Leite - Dilúvio das Almas
O romance de estreia do poeta cearense Tito Leite é permeado por um estilo de frases curtas e diálogos essenciais, fazendo lembrar da clássica citação de Graciliano Ramos (1892-1953) ao comparar a atividade do escritor com o ofício das lavadeiras de Alagoas, na qual o mestre nos ensinava: "A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer", simples assim. Outra semelhança com a obra do velho Graça é a construção de personagens sufocados por um meio social hostil e em permanente crise existencial.
O narrador-protagonista é Leonardo que, após muitos anos vivendo em São Paulo, retorna à cidade natal no interior do Ceará, Dilúvio das Almas, um lugar onde a desigualdade social e a impunidade alimentam o clima de violência e "O bicho mais fácil de matar é o homem." O sentimento de inadaptação de Leonardo fez com que ele se transformasse em um "eremita urbano, sozinho nas metrópoles", mas neste retorno ao passado ele acaba se envolvendo com a brutalidade local e descobre que, às vezes, não conseguimos escapar do nosso destino.
"Eu me lembro como se fosse hoje. Era o ano de 1970 quando parti, o dia ainda estava nascendo. Homens e mulheres fazendo caminhada. O vigia da prefeitura com uma vontade de quebrar as horas. Um galo ensejando seu primeiro canto na aurora, e eu negando minha vida naquela cidade por inúmeras vezes. Não esperei as trevas se esvaírem completamente e fugi de Dilúvio das Almas. Fugi da minha família e do meu sertão. Fui embora sem dizer adeus ou algo do tipo 'um dia eu volto e quem sabe não me demore'. Na saída, nem sequer sacudi a poeira. Joguei fora os sapatos e segui em frente. Os pés queimados pelo mormaço do asfalto. Passaram as marchinhas de Carnaval, a Semana Santa, as quadrilhas juninas. Nasceram flores. As famílias sepultaram seus mortos. As gaiolas da minha casa ganharam teias de aranha. Pássaros mudaram de penugem. Somente um ano depois ficaram sabendo que eu ganhava o pão trabalhando numa loja de tecido em Recife e tocava violão em uma banda que se apresentava nos cabarés à noite." (pp.22-3)
O assassinato de Isaque, o filho do tio repentista Zé Raimundo e Dona Rosa, é o evento inicial que irá provocar uma série de outras mortes e colocar Leonardo em rota de colisão com os poderosos da cidade e seus negócios ilegais, colocando em risco a sua própria segurança. Ele passa a reavaliar o egoísmo com que levara a sua vida errante até então: "Creio que nunca me preocupei tanto com outras pessoas. Sempre só tive que me cuidar e me preocupar apenas comigo. Sem compromisso com a salvação de ninguém ou dos meus dias."
"Sou feito árvores que rasgam suas raízes. Não sou homem de genealogia; dentro de mim, enveneno toda sensação de pertencimento. Árvores sem raízes se transmudam em árvores que andam. Não me compreendo nesse lugar. Meu verdadeiro pai morreu de tuberculose quando eu tinha sete meses. Minha mãe era uma viúva com um filho para criar, numa realidade nada generosa com as mulheres. Não havia muita possibilidade de trabalho. Na árida luta pela sobrevivência, ela foi enfermeira durante um tempo. Depois abriu uma pequena venda. Por causa da necessidade, se casou com o velho Joaquim, que era também viúvo e com três filhos pequenos. Apesar de ele não gostar de mim, eu o chamo de pai. Minha mãe dizia repetidamente 'pai é quem cria'. Toda vez que ele olha para mim, lembra que não foi o primeiro. Minha mãe amou outro." (pp. 30-1)
Leonardo é dominado pela vontade de justiça. Contudo, se a justiça é impossível devido à corrupção e impunidade locais, para não ser um estrangeiro em sua própria terra e preservar a sua honra, ele aprenderá a exercer a ancestral prática da vingança, no seu sentido mais destrutivo. O romance de Tito Leite nos mostra uma realidade ainda persistente em muitas regiões do país, nas quais a resolução de conflitos ainda segue uma longa sequência de ações e contra-ações como forma de punição, sem o acesso a instrumentos legais.
"Sempre estive aberto ao novo e paguei todas as consequências sem murmurar. Muitas vezes até neguei a minha própria identidade. Habitei qual um estrangeiro em todos os lugares, feito quem prova todos os licores e quintessências. Fazendo deles a cura e o veneno dos meus dias. Mas esse novo tem gosto de azedume. Odor de agouro, de fóssil. Lembro do Cristiano e do filho. Lembro de alguns homens e mulheres que ousaram amar perigosamente. Que saudade de quando eu era apenas um enfermo social. Um maldito. No meu nada e desapego, fluía o que havia de melhor e grande em mim. Sou tomado por uma saudade. Saudade de quando eu era apenas um peregrino na terra." (p. 85)
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