Thiago Medeiros - Sou a pronúncia do teu nome
Encontrei neste livro de poemas de Thiago Medeiros o mesmo compromisso já demonstrado anteriormente na sua prosa – ler a resenha da antologia de contos "Claro é o mundo à minha volta" – com tudo aquilo que é próprio da natureza humana na busca de algum sentido para uma breve e frágil existência, um apoio que a literatura sempre oferece como uma espécie de religião. Por sinal, a religiosidade é uma inspiração constante na obra de Thiago, assim como as demandas do corpo, temas que não são incompatíveis, muito pelo contrário. Exemplo deste ritmo de opostos está no poema abaixo "no dia que antecede catorze de dezembro".
A beleza dos versos é constante, mesmo ao tratar de assuntos como xenofobia em "visita ao masp": "[...] Boa tarde // E a atendente / Sabe de onde / Sou // minha língua / brotando raios / da silibrina; pa / dres cíceros e / cangaço // Pergunta o que / Fui fazer por ali // ... vim a trabalho ... // Pergunta / dentes cheirando a / listerine azul / se já encontrei / emprego // deve achar que me chamo / Severino // mas não tive / tamanha honra" e também a falsa religião quando o pastor adverte que "a língua é para sentir sabores" no poema "deus teria dito a ele": "[...] pois tudo depende da / fome // e é pela boca / que se come // e é pela boca / que se sacia // e é pela boca / que seguimos insones / e crentes / que sem dormir / jamais / amanheceria".
Também o amor está presente em "creio que seja sobre você, filha": "tenho um poema enorme sobre / o tempo, que me acompanha em / mãos dadas e passeios sobre meus / ombros // tenho um poema enorme sobre / o tempo, com cabelos lavados / em promessas de nada de / lágrimas // tenho um poema enorme sobre / o tempo, cuja voz insisto manter / sob o mesmo volume das conversas do mundo [...] // tenho um poema enorme sobre / o tempo, o único para o qual / sussurro toda noite, viva mais / que eu, esteja aqui por todo / o sempre depois de mim [...]"
Deixo com vocês três exemplos completos dos poemas de Thiago Medeiros, um homem que "escreve para não esquecer de si mesmo", muito recomendado na prosa e também na poesia.
no dia que antecede catorze de dezembro
chove no dia
de santa luzia
dia em que a fome
me faz comer
pedaços da boca
tenho agora os
dentes à mostra
sem a guarda
dos lábios
não guardo mais
os dentes e alguém
confunde que esses
dentes indefesos
sejam uma graça
alcançada num
dia sacro
chove no dia
de santa luzia
nascerão flores
em pés de café
e sorrisos em
lábios roídos
pela anemia
das vontades
chove no dia
de santa luzia
e sou indiferente
à renitência das
águas e à grandeza
dos mares que sempre
estão secos aguardando
meu retorno
–
há quem fale
sobre haver
sal em meus
olhos onde
a língua não
alcança então
sigo mastigando
lábios
–
chove no dia
de santa luzia
e invejo todos
os mariscos por
não terem dentes
ou lábios
e por se reproduzirem
a distância
desconhecendo todos
os significados da carne
chove no dia
de santa luzia
é domingo e talvez
corte as unhas dos
pés e envenene
cafezais por
brotarem
flores
e talvez fume
até que me
apodreçam
as cordas
vocais
–
nunca precisei
de voz para nada
basta-me toda a
mudez do corpo
e o cochicho das
unhas que brotam
debochando das
flores que aguardam
chuvas no dia que antecede
catorze de dezembro
–
talvez meus
olhos caiam
em bandejas
de prata e eu
descubra que
são tão secos
quanto mares
quando não
estou perto
e talvez eu já seja
um marisco imóvel
sem lábios e sem
dentes que ignora
os significados da
carne
chove no dia
de santa luzia
é
domingo
não esperamos
nada além do
conforto dos
enforcados
vizinhança
da toca
de cima
ouço a
menina
dizer
mãe
olha como
ficou
colorido
ninguém
responde
não sou
o único
a morar
só por
aqui
não me conceda coroas
perdoa se
hoje não
desfaço
as tranças
do teu cabelo
não tenho fé
nos desfazeres
não tenho fé nos desmontes
não tenho fé
nos deslizes
mas ainda
acredito
num banho
de nanquim
caído dos olhos
de noite sem
lua
Sobre o autor: Thiago Medeiros é pernambucano de Caruaru. Escritor e agitador cultural. Idealizador do Encontro Literário Letras em Barro e da oficina Levante Literário. Publicou o livro de contos Claro é o mundo à minha volta, Editora Patuá. Apresenta, junto ao poeta Andri Carvão, o Simpósio de Poetas Bêbadxs. Lançou em 2020 a coletânea de poemas Cidade finada, Editora Telucazu. Organizou a antologia Nós que aqui estamos Nordeste, pela editora caruarense Arrelique. Escreve para não esquecer de si mesmo.
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