Nilton Resende - Fantasma

Literatura brasileira contemporânea
Nilton Resende - Fantasma - Editora Trajes Lunares - 100 Páginas - Capa de Nilton Resende e Ulysses Ribas - Imagem de Capa de Afonso Sarmento - Lançamento: 2022.

"Nos lugares, após frequentados por pessoas diversas, há sempre um pouco delas: odores, raspas de pele, pelos salivas, lembranças sonoras, humores vários. Grudam-se às paredes, tecidos, pisos. Por vezes, varam-nos. / Os lugares todos são palimpsestos de visitas." Este é o formidável início do romance de Nilton Resende, Fantasma, que tem como protagonista uma presença incorpórea formada por todas as lembranças de pessoas que passaram por um quarto de hospedaria. Limitado a este espaço, o espectro se ressente pela falta de um corpo, existindo apenas pela palavra e sofrendo com a impossibilidade de concretizar um ato de afeto.

O autor soube resolver com criatividade a complexa questão narrativa de diferenciar as falas do fantasma-narrador e dos outros personagens, assim como a condução principal em terceira pessoa, sem comprometer a fluidez do texto, as falas se manifestam como um sopro, sem sobressaltos, utilizando diferentes sinalizações gráficas, como demonstrado nos destaques abaixo. Outra interessante característica técnica utilizada por Nilton Resende para aumentar a sensação de estranhamento foi a utilização de um português arcaico em alguns trechos.

"FORA UMA NOITE BASTANTE DISTINTA, a de quando vira sobre o homem e o menino as duas redomas Ninguém será testemunha de mim uma noite bastante distinta, pois antes o anoitecer sempre fora apenas adensamento, um juntar do que recolhera durante o dia, um repouso para que tudo se assentasse Ninguém será testemunha por tempos, a noite fora apenas sentir-se encher ou repousar. Ao depois, tornou-se também o espanto de perceber a própria solidão em meio aos outros, o espanto de haver em si o que de modo algum poderia dividir com quem estivesse deitado na cama à frente, ou sentado, ou fazendo qualquer coisa ou coisa nenhuma. A ânsia Apenas esta informe abstração que sente agora mesmo, a ânsia, este afinco de não se dissolver nas coisas, de não ser um nada, mas poder estar num lugar, firmando os pés sobre o piso, abrindo os braços onde gostaria que houvesse braços para poder Há ganas de dança nos braços que ora não tenho mirando um ponto exato, talvez percorra o caminho, talvez estenda a ponta dos dedos, toque o alvo, e diminua este sentimento de inexistência quando sabe que existe, esta busca, esta necessária aposta num nome para caso lhe perguntem como se chama Apesar de e responderá Apesar de, seu nome Eu, esta informe e inútil abstração" (p. 32)

Todos nós carregamos as marcas das experiências vivenciadas e, assim como o fantasma-narrador, nem sempre conseguimos transformar os nossos sentimentos em ações concretas, a própria literatura é um permanente esforço de querer ser, apesar de muitas vezes se transformar em uma "informe e inútil abstração". No entanto, muito mais do que um exercício de metalinguagem, a obra é oportuna porque, em meio ao obscurantismo atual, apresenta, curiosamente pelo olhar de um fantasma, o que é essencial ao ser humano.

"UM CRESCENDO DE SONS, as passadas no corredor, risos, reclamações, tecidos, um zíper de alguma bolsa Virão aqui? esta dupla sensação de saber-se alegre e triste, porque depois novamente irão embora, largando-lhe só, os hóspedes. Estes que neste exato instante mexem a porta Entrem, por favor abrem-na. Levanta então a cabeça e baixa as mãos, empertigando-se febril enquanto irrompem no quarto Uma família uma mulher traz um menino no braço Eu devia ter escolhido a mala entram. Uma menina e um menino brigam para passarem, o menino a empurra Parem de agonia diz a mulher, levando a mão ao cabelo, suada. O menino e a menina, cada um com uma mochila às costas. A menina carrega uma bolsa pendurada ao ombro. Um homem traz consigo uma mala de rodas e uma bolsa à mão Virgínia, você fecha? pergunta ele à mulher. Ela fecha a porta." (p. 34)

"Há ganas de dança nos pés que ora não tenho", a presença que habita o quarto da hospedaria nos ensina que a vida, por mais corriqueira que seja, é um presente precioso demais, "O simples fato de estar em vida é uma volúpia". Um livro difícil de definir e muito original, tanto na forma quanto no conteúdo, provando que a literatura sempre encontra novas formas de expressão e renovação, mesmo ao lidar com temas antigos como fantasmas em crise.

"Os cinco, sob um mesmo lençol que lhes cobre os corpos, os cinco sobre a cama, o bebê junto ao peito do homem, o menino junto às costas da mãe, que abraça as costas da menina, um enorme e pulsante amálgama, e envergonha-se por tê-los assustado, afinal quisera apenas estar junto, quisera simplesmente estar perto e dividir algo A noite fora um mundo de sustos sim, a noite fora isso, mas ao menos agora teria um nome Fantasma mas há um engano, porque fantasmas eram todos, e se as pessoas se vissem em profundidade, não usariam essa palavra como distinção. Pudessem ver-se em demasia, dedicariam um ao outro o assombro que lhe dedicaram. / Ri-se Fantasma como se apenas em si houvesse esta cesura, como se apenas em si houvesse esta natureza, esta ideia flutuante e incorpórea em busca de um corpo que lhe permita realizar-se Todos são fantasmas há uma íntima semelhança Somos mais uma vez entristece-se por não ter braços ou rosto De perto, todo mundo é frágil num grande esforço, abotoa a boca, como se a tivesse, e beija cada um dos cinco na face, desejando que tenham bons sonhos, cada beijo como se fosse um irrecusável pedido. / Fecha os olhos, como se olhos tivesse, e pela primeira vez, desde que se soube existindo, como se pudesse, adormece." (p. 76)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Nilton Resende é alagoano de Maceió. É Professor Adjunto de Literatura da Universidade Estadual de Alagoas/Campus Zumbi dos Palmares, na qual coordena os Grupos de Pesquisa Ensino de Literatura (com ênfase no Ensino Médio) e Estudos da Narrativa (com ênfase em Narrativas de Ficção). Integra a Cia. Ganymedes de teatro, para a qual adaptou a novela Mário e o Mágico, de Thomas Mann, para o espetáculo O Mágico, que codirigiu e protagonizou. Publicou os livros O Orvalho e os Dias (poesia), Diabolô (contos), A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de Antes do Baile Verde, Fantasma (romance). No cinema, tem trabalhado como ator, roteirista, preparador e diretor de elenco. O curta metragem A Barca (2020), baseado no conto “Natal na barca”, de Lygia Fagundes Telles, é seu primeiro filme como roteirista e diretor.

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