Tito Leite - Aurora de Cedro
Tito Leite - Aurora de Cedro - Editora 7Letras - 88 Páginas - Prefácio: André Luiz Pinto - Coordenação Editorial: Isadora Travassos - Lançamento: 2019.
O título desta segunda antologia de poemas de Tito Leite me lembrou de um famoso trecho da canção Anthen do compositor e poeta canadense Leonard Cohen (1934-2016): "Há uma rachadura em tudo. É assim que a luz entra." Neste contexto, Aurora me pareceu uma imagem perfeita para o princípio de luz, ainda incipiente, que antecipa a transformação da noite em dia, trazendo a mudança. O cedro, por sua vez, é um símbolo de força e permanência, inclusive no sentido espiritual. Logo, com Aurora de Cedro completa-se a expressão de uma resistente luz transformadora, irradiada pela arte e cultura, em oposição a todo tipo de obscurantismo.
A poesia aqui, na aparente simplicidade dos versos curtos e ritmados, confere sonoridade e sugere imagens poderosas por meio da palavra exata que não parece ter sido obtida em algum momento de inspiração casual, mas sim decorrente de um trabalho paciente e cuidadoso, como no processo de poda de uma delicada árvore bonsai. É de se ressaltar também a erudição do autor, mestre em Filosofia, que fica evidente pela abrangência literária, em época e estilo, das epígrafes no livro, variando de Camões a Jack Kerouac, Maiakovski a Herberto Helder e finalizando com Juan Gelman. Uma citação para cada uma das cinco partes que compõem a antologia, separando os poemas em grupos com uma certa unidade temática.
Na parte inicial, Recreio dos segregados, em uma abordagem mais política, o poeta busca dar voz a uma parcela esquecida da sociedade, como no poema Discordância: "Não me conformo/ com os atropelos/ da rotina, os ratos/ que se abrigam nas epidermes/ dos bueiros celestes,/ os nomes queimados/ na fogueira da maldade." Em Showroom a poesia se transforma em denúncia de injustiça social quando o shopping, sofisticado templo do consumismo, é identificado como um lugar inacessível aos segregados que apodrecem no inverno.
SHOWROOM
O shopping era sofisticado:
fedia
a showroom de automóvel.
Água suja descida da escória.
Um homem
apodrecia em inverno.
Não nadava na direção
contrária:
buscava um lugar no inferno.
Na segunda parte, Eu beijaria o caos, o poeta identifica no caos do mundo à sua volta toda a fonte de inspiração e aceita esta influência. Como bem destacado na brilhante introdução de André Luiz Pinto, "o título refere-se ao primeiro livro [Digitais do caos, de 2016], mas guarda algo a mais: estando a frase no futuro do pretérito, quais as condições que fariam o poeta beijar o caos? O que o levaria (e a pergunta é válida porque o poeta escreve explicitamente na primeira pessoa, 'Eu beijaria o caos') a de fato beijar o caos?" O poema Fugacidade mostra o desinteresse do poeta pelas estrelas indiferentes e a atração pelo desordenado.
FUGACIDADE
Não perco
o poder de fogo
com as estrelas
que me
são indiferentes.
Mesmo
que o vento
me cortasse
os lábios,
eu beijaria o caos.
Deus me sabe
na moira
das suas mãos.
São voláteis
as minhas preces.
A Transcendência do fogo reúne poemas que nos ensinam uma espécie de necessidade de exposição ao risco, de batismo de fogo que somente adquirimos com os sucessivos percalços da vida. Em Imanência (termo oposto a transcendência), a prova do doloroso aprendizado: "A vida fere/ até a carne/ ficar macia.", contudo não há garantias: "O medo de que tudo/ dê em nada dói nos ossos." A poesia é a única esperança de liberdade.
IMANÊNCIA
Pátria-polida,
a sangria nervosa
da alma.
Trigo nos dentes das feras.
A vida fere
até a carne
ficar macia.
O medo de que tudo
dê em nada dói nos ossos.
A vontade
de liberdade nos devora:
fogo em afago
o pulo do gato.
Na minha opinião, os poemas mais ricos de significado estão na parte O absurdo é delicado, onde não podemos deixar de concordar que o poeta é um "marginal da palavra" como descrito em Sondareza, um texto que também resume de forma precisa a responsabilidade de todo poeta em ser verdadeiro e, se possível, visceral: "alguns poetas/ falam das coisas/ que lhes faltam,/ outros, dos demônios/ que não partiram.", muito lindo não é mesmo?
SONDAREZA
No tinteiro
a cor
dos meus olhos
Há poemas sinóticos
Com o mesmo
logos, a mesma
forma, a mesma
errância, mas nunca
no mesmo inferno
de espanto.
Não há poetas sinóticos.
Todo marginal
da palavra tem
a sua maneira
ínfima ou celeste
de ser visceral:
alguns poetas
falam das coisas
que lhes faltam,
outros, dos demônios
que não partiram.
Na parte final, As pupilas da tarde, os poemas assumem a força do lirismo e deixam a prudência de lado, a luz vem na forma de amor nas suas diferentes formas como em Inesperado: "O inesperado/ me abraça, queima/ minha pele e não/ dá explicação.// O inesperado/ é como o primeiro beijo:// lembra o solfejo/ de uma canção/ da Billie Holiday." Em Anômalo, o poeta não precisa de bom senso, muito menos ser comedido ou respeitoso com a responsabilidade de suas escolhas: "Não quero chão./ Quero nuvens,/ lua ou a queda."
ANÔMALO
Não me peça
bom senso,
sou do incenso.
Nunca comedido
ou respeitoso
com o peso
das escolhas.
Não ter medo
de colocar o mundo
em questão
é trilha sonora
de toda estrela bailarina.
Não quero chão.
Quero nuvens,
lua ou a queda.
Chegando ao final desta resenha, julguei interessante informar ao leitor que Cícero Leilton Leite, ou simplesmente Tito Leite, é um Monge Beneditino. Tive receio de que este dado biográfico, que normalmente é colocado no início do texto, poderia influir de alguma forma na percepção dos poemas pelos leitores. Afinal, a ideia que normalmente fazemos do religioso que assume uma vida monástica, isolada da sociedade, não é condizente com a surpreendente força e independência desses poemas, mas talvez eu não entenda muito dessas coisas.
Sobre o autor: Tito Leite (Cícero Leilton) nasceu em Aurora/CE (1980). É autor do livro de poemas Digitais do Caos (Selo Edith, 2016). Poeta e monge beneditino, é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Curador da revista Gueto. Aurora de Cedro (Editora 7Letras, 2019) é sua mais recente obra.
A poesia aqui, na aparente simplicidade dos versos curtos e ritmados, confere sonoridade e sugere imagens poderosas por meio da palavra exata que não parece ter sido obtida em algum momento de inspiração casual, mas sim decorrente de um trabalho paciente e cuidadoso, como no processo de poda de uma delicada árvore bonsai. É de se ressaltar também a erudição do autor, mestre em Filosofia, que fica evidente pela abrangência literária, em época e estilo, das epígrafes no livro, variando de Camões a Jack Kerouac, Maiakovski a Herberto Helder e finalizando com Juan Gelman. Uma citação para cada uma das cinco partes que compõem a antologia, separando os poemas em grupos com uma certa unidade temática.
Na parte inicial, Recreio dos segregados, em uma abordagem mais política, o poeta busca dar voz a uma parcela esquecida da sociedade, como no poema Discordância: "Não me conformo/ com os atropelos/ da rotina, os ratos/ que se abrigam nas epidermes/ dos bueiros celestes,/ os nomes queimados/ na fogueira da maldade." Em Showroom a poesia se transforma em denúncia de injustiça social quando o shopping, sofisticado templo do consumismo, é identificado como um lugar inacessível aos segregados que apodrecem no inverno.
SHOWROOM
O shopping era sofisticado:
fedia
a showroom de automóvel.
Água suja descida da escória.
Um homem
apodrecia em inverno.
Não nadava na direção
contrária:
buscava um lugar no inferno.
Na segunda parte, Eu beijaria o caos, o poeta identifica no caos do mundo à sua volta toda a fonte de inspiração e aceita esta influência. Como bem destacado na brilhante introdução de André Luiz Pinto, "o título refere-se ao primeiro livro [Digitais do caos, de 2016], mas guarda algo a mais: estando a frase no futuro do pretérito, quais as condições que fariam o poeta beijar o caos? O que o levaria (e a pergunta é válida porque o poeta escreve explicitamente na primeira pessoa, 'Eu beijaria o caos') a de fato beijar o caos?" O poema Fugacidade mostra o desinteresse do poeta pelas estrelas indiferentes e a atração pelo desordenado.
FUGACIDADE
Não perco
o poder de fogo
com as estrelas
que me
são indiferentes.
Mesmo
que o vento
me cortasse
os lábios,
eu beijaria o caos.
Deus me sabe
na moira
das suas mãos.
São voláteis
as minhas preces.
A Transcendência do fogo reúne poemas que nos ensinam uma espécie de necessidade de exposição ao risco, de batismo de fogo que somente adquirimos com os sucessivos percalços da vida. Em Imanência (termo oposto a transcendência), a prova do doloroso aprendizado: "A vida fere/ até a carne/ ficar macia.", contudo não há garantias: "O medo de que tudo/ dê em nada dói nos ossos." A poesia é a única esperança de liberdade.
IMANÊNCIA
Pátria-polida,
a sangria nervosa
da alma.
Trigo nos dentes das feras.
A vida fere
até a carne
ficar macia.
O medo de que tudo
dê em nada dói nos ossos.
A vontade
de liberdade nos devora:
fogo em afago
o pulo do gato.
Na minha opinião, os poemas mais ricos de significado estão na parte O absurdo é delicado, onde não podemos deixar de concordar que o poeta é um "marginal da palavra" como descrito em Sondareza, um texto que também resume de forma precisa a responsabilidade de todo poeta em ser verdadeiro e, se possível, visceral: "alguns poetas/ falam das coisas/ que lhes faltam,/ outros, dos demônios/ que não partiram.", muito lindo não é mesmo?
SONDAREZA
No tinteiro
a cor
dos meus olhos
Há poemas sinóticos
Com o mesmo
logos, a mesma
forma, a mesma
errância, mas nunca
no mesmo inferno
de espanto.
Não há poetas sinóticos.
Todo marginal
da palavra tem
a sua maneira
ínfima ou celeste
de ser visceral:
alguns poetas
falam das coisas
que lhes faltam,
outros, dos demônios
que não partiram.
Na parte final, As pupilas da tarde, os poemas assumem a força do lirismo e deixam a prudência de lado, a luz vem na forma de amor nas suas diferentes formas como em Inesperado: "O inesperado/ me abraça, queima/ minha pele e não/ dá explicação.// O inesperado/ é como o primeiro beijo:// lembra o solfejo/ de uma canção/ da Billie Holiday." Em Anômalo, o poeta não precisa de bom senso, muito menos ser comedido ou respeitoso com a responsabilidade de suas escolhas: "Não quero chão./ Quero nuvens,/ lua ou a queda."
ANÔMALO
Não me peça
bom senso,
sou do incenso.
Nunca comedido
ou respeitoso
com o peso
das escolhas.
Não ter medo
de colocar o mundo
em questão
é trilha sonora
de toda estrela bailarina.
Não quero chão.
Quero nuvens,
lua ou a queda.
Chegando ao final desta resenha, julguei interessante informar ao leitor que Cícero Leilton Leite, ou simplesmente Tito Leite, é um Monge Beneditino. Tive receio de que este dado biográfico, que normalmente é colocado no início do texto, poderia influir de alguma forma na percepção dos poemas pelos leitores. Afinal, a ideia que normalmente fazemos do religioso que assume uma vida monástica, isolada da sociedade, não é condizente com a surpreendente força e independência desses poemas, mas talvez eu não entenda muito dessas coisas.
Sobre o autor: Tito Leite (Cícero Leilton) nasceu em Aurora/CE (1980). É autor do livro de poemas Digitais do Caos (Selo Edith, 2016). Poeta e monge beneditino, é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Curador da revista Gueto. Aurora de Cedro (Editora 7Letras, 2019) é sua mais recente obra.
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Comentários
Vale muito a pena adquirir e ainda mais depois de ler esta belíssima resenha.
Parabéns!
Fernando Boigues