Alberto Bresciani - Fundamentos de ventilação e apneia

Literatura contemporânea brasileira
Alberto Bresciani - Fundamentos de ventilação e apneia - Editora Patuá - 144 Páginas - Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação: Leonardo Mathias - Lançamento: 2019

Certos livros já surpreendem e desafiam o leitor a partir do título, como é o caso da mais recente antologia de poemas de Alberto Bresciani, Fundamentos de ventilação e apneia, cuja designação mais parece expressar um manual da área de biologia e fisiologia do que propriamente uma obra de poesia. Ledo engano, como logo veremos. O processo de ventilação pulmonar viabiliza a nossa frágil existência ao renovar o ar de modo espontâneo, possibilitando os ciclos de inspiração e expiração, ou seja, a troca de oxigênio e dióxido de carbono com o meio ambiente. Já a apneia, em contrapartida, representa a suspensão voluntária ou involuntária desse processo repetitivo, o que nos remete a uma irresistível aproximação com a morte. Entre esses dois extremos e obedecendo a inusitada divisão: Ventilação espontânea e Apneia, estabelece-se a estrutura do livro e a classificação dos poemas.

Outra peculiaridade, talvez ainda mais original, é a analogia que Bresciani estabelece em cada poema entre características humanas e o comportamento dos bichos mais diversos: aves, peixes, ouriços, hienas, crocodilos, moluscos, golfinhos, cavalos, camelos e muitos outros. Mas, afinal, o que distingue o homem dos outros animais? A resposta óbvia, como nos vangloriamos de saber, apoia-se no fato de possuirmos uma inteligência superior, consciência e raciocínio lógico; atributos que nos garantem o controle dos próprios atos. No entanto, a pretensa faculdade do raciocínio é frequentemente superada por certos impulsos nem sempre louváveis ou quando simplesmente seguimos a manada em um estado de obediência bovina.

          BISÕES

          E seguimos como bisões,
          olhando para a frente,
          em disparada, fugindo
          de absolutamente nada
          e de quase tudo

          No caminho, outros bisões
          se juntam ao grupo
          e continuamos todos,
          aos atropelos, na mesma rota

          Corremos, nós os bisões,
          para onde não sabemos
          em uma pradaria fictícia
          que, a exemplo dos rios,
          é outra a cada migração

          Olhamos para a frente
          e nos perguntamos,  
          os olhos bovinos,
          se este é mesmo
          o nosso lugar.

E permanecemos em nosso habitat natural, seguindo em frente com a manada, sem saber e sem questionar o sentido de tudo isso, é quando Alberto Bresciani nos alerta para a insignificância de uma existência que se limita à sobrevivência e a mensagem da sua poesia me faz lembrar, na simplicidade direta dos versos e na bem-humorada estrofe final de Anatomia, um pouco do estilo humanista da polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012). Apesar de tudo, só nos resta viver, nem que seja só para pagar os malditos boletos na segunda-feira.

          ANATOMIA

          Para o que servem coração,
          rins, fígado, veia cava,
          gônodas e glândulas
          vocacionadas ao pó?

          Todos os dispositivos
          complexos, ligados, frágeis
          dentro de enguias, ursos, 
          tartarugas e gaivotas

          Não importam cordilheiras
          em transe, o livro nunca lido,
          abstenções de carne, álcool,
          esportes radicais, sexo e ar

          Inúteis feixes de nadas
          no fim das contas,
          que pagaremos felizes
          nesta segunda-feira.

Os poemas incluídos na segunda parte do livro, Apneia, ganham em dramaticidade e urgência com o agrupamento dos versos em blocos como em Tropel, arrebatando o leitor com o poder de suas imagens fortes, de tirar o fôlego, até a conclusão surpreendente. É curioso como o autor utiliza sempre um único ponto final, como ensina um grande mestre do conto universal, Isaac Bábel (1894-1940): "Nenhum ferro pode penetrar no coração humano de maneira tão gélida como um ponto colocado no momento exato." É bem o que acontece neste poema, quando alguma coisa muito importante que precisávamos dizer morre em nossa boca.

          TROPEL

          Os cavalos soltos no sangue, na garganta,
          incontidos, o rebater dos cascos em seixos,
          como dançarinos de flamenco, os cavalos
          vêm de longe, de onde tudo se entrega
          à extensão do que é extremo, suor,
          e nunca se quebra, sim, os cavalos
          correm do longe ao longe, lugar de corpos
          reais, rudes e comestíveis ao gosto do desejo
          Os cavalos sobem à boca, soltos, suas crinas
          deixam rastros, mas chegam à boca e na boca
          o passo emperra, os cavalos são então um som
          apagado, oco, nenhum som, são pedra.

Como mostra o poeta Bresciani em Trinta e umo tempo passou, mas não nos fez mais sábios: "O tempo não nos fez / mais sábios, o tempo / nos cega e engana // Nossos planos, essas / metas de fim de ano / cairão como fortalezas // Melhor nos serve / a memória dos peixes / – breve, breve, breve // Escrever nossos nomes / no papel em branco, / a certeza // de não nos ferirmos, / apagar quedas, / estragos, trancos // Provemos as cerejas / que sobraram sobre a mesa / São doces, macias." Ainda carregamos o medo ancestral da espécie, como tão bem representado no poema Pânico em tom de fábula, novamente os bichos nos ensinando.

          PÂNICO

          O pássaro sobre o galho,
          hipnotizado pelo gato,
          pela serpente, preso
          como se houvesse visgo
          sobre o ramo comum
          Uma ave sem voo,
          pronta ao voo,
          os olhos esbugalhados
          de medo do ofídio, do felino
          que nunca existiram.

Recomenda-se ler os poemas neste livro com calma, de preferência mais de uma vez, principalmente um dos mais lindos, Passado a limpo, que desenha aos poucos uma imagem da morte "que veio cedo", representando a ausência pelo branco da parede, as atividades inacabadas, "o último livro pelo meio" e, depois, mais um ponto final muito bem colocado pelo autor. A poesia não vai nos livrar da dor, mas ainda assim é indispensável.

          PASSADO A LIMPO

          O branco da parede é meu reflexo
          e deve ser um tipo de penitência
          ver-me assim, surpreso, pálido,
          sem manchas, hematomas, pânico,
          sim, estou bem, ainda estou aqui,
          esperando a mensagem, o som
          do telefone, o resultado dos exames,
          os seus, espero, não choverá hoje,
          nada aconteceu comigo, veja, sou
          só eu, esta parede em branco, som 
          nenhum, notícia alguma sua, não,
          nós nunca pensamos ou acreditamos
          que ela viria e estávamos todos aqui,
          no supermercado, na limpeza da casa,
          ouvindo o pássaro bem alimentado,
          vivo sobre a amendoeira, escute,
          não tenha medo, não guardo sustos,
          filhotes de hamster ou gatos, não,
          nós nos distraímos e ela veio, cedo,
          o último livro pelo meio, os lençóis
          limpos, passados, aqui, nas prateleiras,
          e então você a seguiu, não deixou
          carta, não disse nada que desperte
          o opaco dessa parede em branco.

Literatura brasileira contemporânea

Sobre o autor: Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro. Vive em Brasília. É autor de Incompleto movimento (José Olympio Editora, 2011) e de Sem passagem para Barcelona (José Olympio Editora, 2015, finalista do prêmio APCA de Literatura - Poesia de 2015). Integra, entre outras, as antologias Outras ruminações (Dobra editorial, 2014), Hiperconexões (Editora Patuá, 2014), Pássaro liberto (Scortecci Editora, 2015), Pessoa - Littérature brésilienne contemporaine (Revista Pessoa, edition spéciale - Salon du Livre de Paris, 2015) e Escriptonita (Editora Patuá, 2016). Tem poemas publicados em portais, blogs e sítios da internet e em revistas e jornais impressos. 

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