Soraya Jordão - Ciranda de Mamutes
O romance de Soraya Jordão tem como base o cotidiano de uma família de classe média na convincente e divertida voz da protagonista Amanda Júlia que sofre aos quinze anos, assim como suas amigas adolescentes, com a insatisfação com o próprio corpo e a ansiedade por persistir sendo uma BVL, ou seja, Boca Virgem de Língua. Seu pai, Olavo, tem uma postura machista e opressora, principalmente no que se refere à educação dos filhos, fazendo com que Saulo, o irmão caçula, precise atender às suas expectativas de masculinidade. Pilar, a mãe submissa, tenta equilibrar os anseios dos filhos com as demandas do marido, mas a revelação de um segredo do passado irá abalar a estrutura familiar e precipitar a perda da inocência.
Com diálogos bem construídos e uma narrativa dinâmica, a autora prioriza as transformações da protagonista para tornar-se mulher, mas também alterna os pontos de vista dos diferentes personagens que tentam se adequar aos papéis que a sociedade estabeleceu. Os capítulos iniciais são leves e descontraídos, mas logo Amanda Júlia ou Amaju, como é chamada pelas amigas, aprende a lutar pelo direito de não ser punida por ter nascido uma menina e, assim, enfrenta os primeiros preconceitos já dentro de casa, principalmente de um pai que nunca disfarçou a decepção por ter sido privado de um primeiro filho homem, tricolor e namorador.
"Estranho esse papo da Ju. Parece até que ela se acha feia. Fala sobre si mesma de um jeito horrível. Como pode não estar satisfeita com aquele cabelo liso intenso e aqueles olhos da cor do céu? Sei lá. Preciso escolher minha roupa. Queria ir com aquele cropped preto e short, mas meu pai daria um ataque. Vou de vestido e tênis. O jeito vai ser amarrar o casaco na cintura para disfarçar o comprimento do vestido. Levo a maquiagem na bolsa para reforçar antes de tocar a campainha. Meu pai só aceita batom rosinha-desmaio, nada de blush nem rímel, acha que é coisa de garota oferecida. Quero ver... Vou tascar o vermelho-berro da Ju. Hum, melhor não. Se rolar o beijo, vai borrar tudo. Se meu pai notar um tracinho de batom garota-fácil, me põe de castigo até a boca enrugar. Cruzes, que horror! Passo só um gloss, transparente mesmo, para dar uma iluminada. Menos uma coisa para pensar. Vou de vestido, agora qual? O preto emagrece. Não, ele tem manga bufante e fico igual ao botijão de gás com capinha de pano da casa da vó Abigail. O vermelho é decotado, mas fica bem em mim. Posso disfarçar o decote com um lenço e, quando chegar lá, tiro e coloco na bolsa. Mas depois tenho que lembrar de colocar de novo. É melhor o branco, será? Esquece! Meu pai vai implicar que é transparente. Não, também não gosto, fico parecendo um suspiro." (p. 41)
Nesta longa jornada para assumir quem realmente somos, as experiências da adolescência podem marcar a nossa personalidade por toda a vida adulta. Eu mesmo, tenho de confessar, às vezes me sinto como um mamute em uma manada de elefantes, assim como os personagens desta ciranda, tendo que reconhecer o óbvio: a necessidade de respeitar as diferenças e preservar a individualidade. Um livro que certamente agradará os leitores de todas as idades, mas particularmente útil para mamutes que ainda não encontraram o seu lugar no mundo.
"Minha mãe quer que eu seja vigilante em tempo integral, com qualquer pessoa e em qualquer lugar, mas ela desistiu de vigiar faz tempo. A impressão que dá é que não está nem aí para meu pai. / Não vejo os dois como um casal. Vivem juntos, mas cada um no seu mundo. Ela, cuidando da casa, da gente, das coisas dele. Ele, no controle de qualidade dos nossos dias. Não ouço briga, discussão, são até bem parceiros e organizados para resolver a rotina, tomar decisões. Só não percebo carinho, não há toque entre eles. Cada um se senta numa ponta do sofá. Acho muito esquisito isso. Ela confia tanto nele que ignora os sinais. Justo ela que argumenta que não podemos ficar na mão de ninguém. / Enquanto almoça, Saulo lê mensagens no celular. Ri, escreve alguma coisa, ri de novo, volta a responder, mais gargalhadas. Ignora a tensão que reina na mesa. Queria perguntar se ele está falando com o Patati Patatá só para implicar. Com o Luciano sei que não é, porque não seria assim tão leve e divertido. / O clima está péssimo. Minha mãe com cara de enterro; meu pai, com cara de Halloween; e eu, com cara de quem matou a família e foi ao cinema. Sinto-me só. Amanda e Júlia emudeceram ao mesmo tempo pela primeira vez. Boio no vazio dos meus pesamentos. Cada pessoa nessa mesa vive num mundo paralelo e eu pareço ser a única que insiste em ajustar a sintonia. Ninguém quer estar aqui, apenas estamos. Todos são mais felizes em outro lugar." (p. 128)
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