Krishna Monteiro - Como se rio

Literatura brasileira contemporânea
Krishna Monteiro - Como se rio - Editora Confraria do Vento - 110 Páginas - Lançamento: 2024.

Os livros de Krishna Monteiro desafiam os protocolos da literatura brasileira  contemporânea, centrada em dilemas existenciais e sociais ambientados nos grandes centros urbanos. Em Como se rio, o autor aprofunda o estilo já anunciado em suas obras anteriores — a coletânea de contos O que não existe mais e o romance O mal de Lázaro — ao apresentar narrativas de caráter atemporal, muitas vezes carregadas de um lirismo místico. Mais do que contos, talvez seja mais correto chamá-las de fábulas: composições alegóricas que, reunidas, formam um evangelho singular sobre a travessia humana pela Terra. Uma jornada solitária em busca de algum sentido diante da brevidade da vida.

No conto de abertura, Trypanosoma cruzi, somos surpreendidos pela escolha do protagonista, um parasita protozoário causador da doença de Chagas: "Na cozinha, a morte coloca a cabeça para fora de sua toca na parede de barro." A roda do destino gira, enquanto o inseto ronda, à noite, os corpos do filho, da filha, do pai e da mãe. Em As mãos de Ismail, uma família se muda para uma "cidade de terra seca, plantas mortas, no centro do sol, no extremo nordeste do país", levando consigo um piano herdado do avô, objeto que será o eixo da narrativa, ligando passado e presente, enquanto Ismail, um jovem prodígio local, revela uma habilidade rara com o instrumento.

"Já foi dito que, à luz do dia, as narrativas dos sonhos evanescem. Que seus símbolos se ofuscam, chegam a parecer tolos. Mas — até hoje — o que vi naquela noite, e nas seguintes, na sala de casa, diante do piano, prossegue como uma imagem esculpida, sólida. Vi o avô, muito mais jovem, sorrindo em minha direção. Estava vestido com a clássica casaca escura dos pianistas. Puxou um banco; disse que me sentasse ao seu lado. E, ao começar a tocar, com uma destreza que eu só reencontraria raras vezes, muitos anos depois, ao assistir a algum jovem prodígio em salas de concerto pelo mundo, o homem que era a cópia perfeita do avô parecia pouco a pouco dissolver a sala com sua música: no lugar do piso revestido em pedra, surgiram ripas de madeira; no ponto onde antes estava o sofá, rolos de corda se enrolaram em si mesmos; um tubo de metal ergueu-se do piso, preenchendo com seu diâmetro quase todo o espaço que havia sido a sala, erguendo-se em direção ao teto, que não mais existia, lançando emanações de fumaça densa para um céu cujas estrelas, não sei como, estavam ali, presentes." (p. 44) - Trecho do conto As mãos de Ismail

No conto Agora e na hora de nosso ar, a morte volta a ocupar o centro da narrativa. O protagonista, passados cinquenta anos, relembra uma manhã chuvosa de infância, quando, durante um passeio com o avô, testemunha um enterro — memória e simbolismo que se conectam, posteriormente, a uma conversa marcante com um velho arqueólogo turco sobre os elementos primordiais que teriam dado origem a todas as coisas.  Entre terra, água e fogo, destaca-se o ar, sem o qual não haveria vida, "O pneuma, para os antigos gregos, O prana, para os indianos, O fôlego da vida, soprado nas narinas do homem pelo Deus dos judeus e cristãos."

"Caíram as primeiras gotas, no momento em que o homem de cruz no peito abriu um livro, proferiu palavras. O homem fechou o livro, olhou contrariado o céu. Alguns poucos de nós puxaram guarda-chuvas; outros — a maioria —, abrigaram-se sob as árvores. A caixa longa de madeira negra, recoberta de buquês já quase desmembrados, restou só, às margens do abismo. E eu, olhando para as gotas incessantes que caíam sem-fim, sentindo o braço forte do avô me retendo, nem podia imaginar que esse dia de meu fascínio primordial com a chuva seria também o primeiro de decepções repetidas, pois, nos anos seguintes, sempre que estivesse chutando bolas na chuva, ou gritando de alegria com outros meninos, ou correndo, ou trocando socos, ou deitado no passeio deixando-me purificar pela correnteza recém-formada, ou disparado em minha bicicleta na tempestade ou simplesmente girando de braços abertos e girando e girando e girando na água, haveria uma voz imperiosa, seca, obtusa de adulto, com a ordem, Venha para dentro, menino!"  (p. 79) - Trecho do conto Agora e na hora de nosso ar

Memória, mito e espiritualidade sustentam também o conto Eu-sou-flor-alta-que-gira no qual a religião oficial é confrontada com a sabedoria popular e a força ancestral da natureza. Krishna Monteiro encontra formas originais de redescobrir uma literatura rica em alegorias, que se afasta das obviedades do cotidiano para focar em zonas mais profundas da experiência humana. Seus textos, nem sempre de fácil compreensão, nos convidam a refletir sobre o papel da arte em nosso tempo — e a nos encantar com tudo aquilo que é essencial, em contraste com a fragilidade da existência e a artificialidade do mundo virtual.

"E lá se vão eles: seus pés marcando o rastro. E eu atrás, seguindo o rastro deles e de dentro dele colhendo espinhos. Assim foi, desde o início. Me lembro. Tudo começou há anos, eu-criança, na missa com a avó, sentada ao lado dela, ouvindo-a dizer-me, mandamento: Não se ajoelhe. Pensei: Mas como? Se, ao redor de nós, o que eu só via eram cabeças baixas, chumbadas na humildade de joelhos, enquanto padre Orlando brandia o fogo. Padre Orlando: olhar aceso, sobrancelhas foices brancas, peito inflado, trovejando intercadências de castigos, ameaças. Enquanto isso, a avó, sentada, me amparava firme, Não se ajoelhe. Sim, a avó sabia, assim havia sido, sempre: padre Orlando a olharia, a deixaria quieta, e logo depois ela alisaria minha saia, ajeitaria minhas tranças, Vamos, e de olhar altivo, conduzindo-me pela mão, seria a primeira a deixar a igreja; em casa, prepararia chás, imagens, plantas, infusões; e naquele mesmo domingo receberia pecadores, um a um, sentada na cadeira de palha, à sombra de nossa parreira, em frente ao galinheiro, pousaria em cabeças pecadoras a mão direita, benfazeja, enquanto, com a esquerda, segurando um galho seco, riscaria cabalas na poeira do terreiro, livrando a todos da febre, reumatismo, medo, de um sem-fim de angústias." (pp. 89-90) - Trecho do conto Eu-sou-flor-alta-que-gira

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Krishna Monteiro é escritor e diplomata. Viveu no Sudão, Reino Unido, Índia e Tanzânia. Seu livro de contos O que não existe mais (Tordesilhas Livros) foi duas vezes finalista do Prêmio Jabuti, em 2016 (categoria contos e crônicas) e 2021 (categoria melhor livro brasileiro lançado no exterior). Em 2018, lançou o romance O mal de Lázaro (Tordesilhas Livros). Tem contos traduzidos em revistas e coletâneas da China, Espanha, França, Hungria, Itália, México e Reino Unido. Em 2023, foi assessor internacional da Ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes. Atualmente, trabalha no Consulado do Brasil em Marselha

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