Um conto inédito de Cortázar

Literatura argentina

Do livro "Papéis Inesperados" (Editora Civilização Brasileira - 2010, 487 páginas, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht) que consiste de uma seleção de textos inéditos e dispersos escritos por Julio Cortázar (1914-1984) ao longo da vida, encontrados, em sua maioria, numa velha cômoda. Compilação de Aurora Bernárdez, viúva do escritor, e Carles Álvarez Garriga. O "conto-poema" abaixo, tão inserido no lirismo fantástico de Cortázar foi publicado somente no jornal mexicano "Unomásuno" em 11 de abril de 1981.

Peripécias da Água
(Julio Cortázar)

Basta conhecê-la um pouquinho para entender que a água está cansada de ser líquido. Prova disso é que na primeira oportunidade se transforma em gelo ou vapor, o que tampouco a satisfaz; o vapor se perde em absurdas divagações e o gelo é tosco e desajeitado, fica quieto onde pode e de modo geral só serve para dar vivacidade aos pinguins e aos gin and tonic. Por isso a água delicadamente escolhe a neve, que anima a sua mais secreta esperança, a de fixar para si mesma as formas de tudo o que não é água, as casas, os prados, as montanhas, as árvores.

Acho que deveríamos ajudar a neve em sua reiterada mas efêmera batalha, e que para isso seria necessário escolher uma árvore nevada, um esqueleto negro sobre cujos incontáveis braços vem se estabelecer a branca réplica perfeita. Não é fácil, mas se ao prever a nevada serrássemos o tronco de forma que a árvore se mantivesse em pé sem saber que já está morta, como o mandarim memoravelmente decapitado por um verdugo sutil, bastaria esperar que a neve repetisse a árvore em todos os seus detalhes e então retirá-la para um lado sem a menor sacudida, num leve e perfeito deslocamento.

Não creio que a gravidade desmanchasse o alvo castelo de cartas, tudo aconteceria como numa suspensão do vulgar e do rotineiro; em um tempo indefinível, uma árvore de neve sustentaria o sonho realizado da água. Talvez fosse destruída por um pássaro, ou o primeiro sol da manhã a empurraria para o nada com um dedo morno. São experiências que deveríamos tentar para que a água fique contente e volte a encher as jarras e copos com a alegria borbulhante que por ora reserva para as crianças e os pardais.

Comentários

olivia disse…
comprei o meu.
ansiedade ultra enquanto não chega :)
Anônimo disse…
Que texto mais lindo!!!!
Sou fã do Cortázar.
Bento Moura disse…
Kovacs, querido...

A Thais tem razão, que texto lindo!Através dele você aprumou meu dia e toda a semana.

Em miragem, vejo esta árvore cercada de branco na vastidão onde nada perturba. Lindo texto e linda fotografia.

Boa semana amigos!
Alexandre Kovacs disse…
olivia, ansiedade boa essa de esperar chegar o livro, mas melhor ainda deve ser aguardar o lançamento do próprio livro como é o seu caso.

Lançamento de "Segunda Mão" de Olivia Maia dia 04/11. Maiores detalhes é só seguir o link no nome dela.
Alexandre Kovacs disse…
Thais, somos todos fanáticos pelo Cortázar! Obrigado pela visita e comentário.
Alexandre Kovacs disse…
Bento, fico feliz de ter fornecido um pouco de inspiração para a sua semana, apesar de que você não precisa mem um pouco, já tem inspiração de sobra!
Gerana Damulakis disse…
Sou uma apaixonada pela literatura argentina (aliás, pela literatura, mas a argentina tem lugar especial) e cheguei a traduzir o Bestiário - não ficou bom, todavia.
Unknown disse…
Esse conto me lembrou bastante da prosa poética de Francis Ponge.
A abordagem é diferente, claro, mas a lembrança da água e suas diversas formas, é similar.
Cada um deles abre os nossos espaços.
Um grande abraço, e obrigado por partilhar.
Alexandre Kovacs disse…
Gerana, a literatura argentina é mesmo muito rica. Que responsabilidade traduzir Cortázar, não é fácil. Uma coisa é ler em espanhol, mas dar continuidade à sua prosa em tradução é outra bem diferente.
Alexandre Kovacs disse…
Djabal, muito boa a analogia entre os autores que existe nesta área mágica da prosa poética.
Lady Cronopio disse…
Quem traz no codinome uma das criações de Cortazar, deveria ser dispensado de dizer o quanto se fez feliz ao ler este post magnífico, mas não resisti e após a terceira visita às mesmas letras deste escrito soberbo, digo: temos tanto ainda a aprender sobre esta poesia mágica tão latina e a um só tempo tão universal...
Sempre grata por esta sua força de seguir este caminho de dividir a beleza da Arte.
Evohé, Kovacs.
Beijos
ps: finalmente recebi meu Dicionário Analógico! Depois te conto.
Bento Moura disse…
Kovacs, esse seu Mundo é realmente maravilhoso!

Tenho duplo prazer: o de ler os seus escritos, naturalmente, e os comentários das pessoas que você reúne aqui - É aprendizado atrás de aprendizado e fico refletindo sobre o desdobramento dos diálogos, os pontos de vista... É muito rico. Gosto sobremaneira porque não vejo empáfia ou afetação, é tudo muito natural e espontâneo.

Aquela cena da Gerana dos pássaros não me sai da cabeça, sobre o cemitério dos pássaros no quintal. Gerana, perdoão mas 'vou ter que fazer alguma coisa com isso', sei lá uma tela... Posso? E de tantas outras pessoas também...

Não consigo conceber meu mundo sem antes visitar este também. Aliás, acho que para quase todos aqui...

Abraços e ... Evohé também. Beijos!!!!
Alexandre Kovacs disse…
Lady Cronópio, quando soube deste lançamento fiquei um pouco desconfiado quanto à legitimidade do livro, vinte e cinco anos após a morte de Cortázar. Mas, à medida que avançava na leitura não pude deixar de me encantar ao reconhecer a prosa do maior de todos os cronópios. Você não pode perder este livro de maneira nenhuma!
Alexandre Kovacs disse…
Caro Bento, obrigado pelo comentário gentil e tenho que admitir que sou muito orgulhoso do pessoal que comenta neste espaço. Aqueles comentários sobre pássaros foram um dos melhores momentos que já tive por aqui sem dúvida. Apenas uma correção: a dona do quintal com os pássaros é a Lígia Guedes e não a Gerana Damulakis, mas tenho certeza de que ambas não ficarão chateadas. Mais uma vez obrigado por participar e ficaria muito feliz em ver o resultado desta tela inspirada pelos pássaros!
Gerana Damulakis disse…
Eu morei 2 anos em Madrid e voltei achando que poderia traduzir, pois o Bestiário está sem tradução aqui há bastante tempo.
Como eu disse, me enganei, não resultou um bom trabalho. Tradução é uma arte também e vi que não tenho talento para ela.
Alexandre Kovacs disse…
Gerana, a tradução é tão importante que sempre faço questão de adicionar o nome do tradutor ao lado do autor no resumo inicial dos livros resenhados por aqui.
Bento Moura disse…
Oi Ligia querida, perdão pelo lapso. Sua narração-poema não sai
da minha cabeça. É de uma força indescritível!

K, obrigado.

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