As vértebras adicionais da odalisca e o poder da arte

La Grande Odalisque (1814) - Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780 - 1867)
La Grande Odalisque (1814) - Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780-1867)

"A grande Odalisca" é uma das mais belas e famosas representações do nu feminino na história da arte ocidental. Grande parte da sensualidade natural da tela está na habilidade do pintor em saber como exibir e, ao mesmo tempo, ocultar a nudez da modelo que tem o corpo ainda mais destacado pelo jogo de luz e sombras do ambiente. A odalisca, que parece à primeira vista estar totalmente à disposição do observador (ou de seu Sultão, proprietário do harém), tem na verdade o olhar distante e uma expressão séria, quase triste. O cenário exótico remetia ao tema do orientalismo, muito apreciado na França do século XIX. Este jogo de contrastes e temas populares tinha tudo para tornar a composição de Jean-Auguste-Dominique Ingres mais um grande sucesso de público e crítica na sua carreira.

Contudo, quando a obra foi exposta pela primeira vez, no Salão de Paris de 1819, a reação dos críticos não poderia ter sido mais negativa. Se observarmos a imagem novamente, dessa vez com mais atenção e menos emoção, poderemos notar claramente uma distorção forçada no alongamento do corpo da modelo. O pintor havia ferido a realidade anatômica ao acrescentar pelo menos três vértebras nas costas da odalisca (até hoje se discute se seriam três ou cinco vértebras adicionais). O olhar frio e analítico dos críticos destacou também outras imperfeições, evidentes nos membros muito compridos, cabeça pequena e o toque final na desconstrução da obra: a posição da perna esquerda está apoiada sobre a direita, obviamente uma pose nada confortável e pouco natural para uma preferida do harém.

Ingres, que era um discípulo do legado artístico de Jacques-Louis David, apreciava e respeitava o classicismo do passado em suas obras, tinha consciência dessas "distorções", mas optou por modificar a anatomia da modelo para lhe conferir sensualidade em curvas mais longas e suaves, pagando um preço caro pela sua opção de beleza. Ao conceder à sua arte o poder arrogante de modificar e corrigir a anatomia em função de um objetivo temático final, ele se tornou um dos precursores da pintura não figurativa. Artistas do movimento modernista no século XX, como Picasso, deram continuidade a este processo de criação, levando ao extremo a distorção de forma e espaço e abrindo novas formas de expressão, também nem sempre compreendidas e apreciadas pela crítica de sua própria época.

Ao imaginar uma torção corporal que é absolutamente impossível devido à limitação anatômica — a não ser que a mulher não tivesse costelas e uma espinha dorsal mais alongada — o artista priorizou a linha do contorno e preservou o efeito do olhar feminino ao se virar para o observador o que multiplica a sensação de erotismo do quadro. Com essa estratégia ele destacou ainda mais o elemento principal da sua composição, a sensualidade da mulher, uma ideia que é impulsionada à partir do fundo escuro do ambiente e rouba toda a nossa atenção em um simples momento. Devemos concordar que o pintor ganhou muito ao contrariar a limitação corporal em uma espécie de photoshop primitivo, mas fascinante, tanto é verdade que estamos aqui hoje discutindo essa obra há mais de dois séculos de sua criação. 

"A Grande Odalisca" continua indiferente a toda essa polêmica, exposta online no Museu do Louvre, desafia o nosso entendimento com a mesma fisionomia enigmática e a anatomia distorcida por Ingres. Na verdade, parece até mesmo insignificante nas suas reduzidas dimensões de 1,62 m de largura por 0,91 m de altura, porém nada que nos impeça de navegar em alta definição pelos seus segredos e imaginar uma noite perdida no passado, principalmente com a ajuda do zoom, explorando os pequenos detalhes da composição, o toque na textura dos tecidos azuis e dourados, o aroma que vem da fumaça do incensário na extremidade direita da tela e até mesmo, quem sabe, sonhar com os delírios provocados pelo cachimbo de ópio que repousa aos pés da misteriosa mulher do oriente. Bom tema para um romance!

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