Virginie Despentes - A vida de Vernon Subutex

Literatura contemporânea francesa
Virginie Despentes - A vida de Vernon Subutex - Volume 1 - Editora Companhia das Letras - 336 Páginas - Tradução de Marcela Vieira - Capa de Tereza Bettinardi - Lançamento: 29/08/2019 (Ler aqui um trecho em pdf disponibilizado pela Editora)

A escritora e cineasta francesa Virginie Despentes foi selecionada entre os seis finalistas (shortlist) com este livro na versão internacional do Booker Prize 2018, em uma edição muito concorrida que acabou premiando a polonesa Olga Tokarczuk com o romance Flights, traduzido e lançado no Brasil em 2014 como Os Vagantes pela editora Tinta Negra. A mesma Olga Tokarczuk foi anunciada novamente este mês com mais uma premiação importante, o Nobel de Literatura 2018, para se ter uma ideia do nível dos finalistas do Booker International Prize em 2018. 

O primeiro volume da ambiciosa trilogia A vida de Vernon Subutex a ser lançado no Brasil é uma grande sátira de costumes da sociedade francesa e de todo o nosso mundo globalizado de uma forma geral. Desde os relacionamentos e informações manipuladas nas redes sociais, até as recorrentes crises econômicas que despejam desempregados e imigrantes ilegais nas ruas de Paris, aumentando sensivelmente o número de moradores de rua, além de todo um submundo formado pelos excluídos do sistema oficial que sobrevivem a partir de esquemas e sistemas alternativos, como o mercado oficial de vídeos pornográficos ou outras atividades de subsistência francamente ilegais, como a prostituição e o tráfico de drogas.

O protagonista cinquentão, Vernon Subutex, é uma espécie de anti-herói que aproveitou todos os excessos da cartilha de sexo, drogas e Rock´n Roll durante os anos 80 e 90 em Paris, onde era proprietário de uma famosa loja de discos chamada Revolver. As mudanças na indústria fonográfica a partir dos anos 2000 levaram Vernon à falência em 2006 e forçado a vender na internet todo o remanescente do seu estoque de discos e pertences mais valiosos como forma de sustento durante o primeiro ano após o fechamento da loja e, depois, sobreviveu às custas de um seguro-desemprego que acabou sendo cancelado pelo governo quando ficou clara a incapacidade de recolocação profissional de um homem que fora vendedor de discos entre os vinte e os quarenta e cinco anos. Finalmente, ele percebeu que estava fora do sistema.
"Os olhos de Vernon se fixam na calça do oficial de justiça, na altura em que ela aperta suas coxas. Vernon espera que o pequeno grupo de homens faça um levantamento de seus bens e vá embora, dando um tempo pra ele se arrumar. Se não estivesse com a conta do banco bloqueada há anos, ofereceria um cheque para adiar o procedimento. No fim, tudo daria certo – o cara que ele identifica como chaveiro parece ser simpático. Seu bigode espesso e cinza, cortado à moda antiga, lhe dá um ar de sindicalista. Vernon torce para que ele não tenha estragado a fechadura, pois não tem como substituir. Pode acontecer de às vezes ele precisar sair de casa, cinco minutos que sejam. Não sobrou nada que possa ser roubado ali – nem mesmo um kosovar arruinado se daria ao trabalho de carregar aquilo que lhe serve de computador. O monitor e a torre pesam toneladas e cheiram a naftalina. O oficial de justiça sugere que ele junte as coisas de que vai precisar nos próximos dias e dê o fora. Nenhum deles diz vamos, deixa pra lá, depois a gente volta, damos dez dias pra ele se virar e vemos o que acontece. Os dois grandalhões que até aquele momento não tinham aberto a boca se instalam no meio do aposento e o aconselham, sem a menor hostilidade, a obedecer o mais rápido possível, sem criar caso." (p. 31)
Tendo sido despejado do seu apartamento devido aos atrasos no aluguel com apenas uma mochila, Vernon precisa encontrar um lugar onde dormir e começa uma busca interminável por antigos amigos e ex-namoradas em busca da ajuda que lhe é concedida eventualmente devido ao seu perfil ainda carismático, principalmente entre as mulheres. Nessa peregrinação pela cidade em busca de abrigo, a autora desfila uma coleção de personagens tão ampla e convincente que cada capítulo do romance pode ser lido como uma unidade independente.

É o caso de Hiena que desenvolveu uma habilidade muito específica nas redes sociais. Com base em um repertório de identidades falsas e pseudônimos com conta no Facebook e no Twitter, ela se especializou em fazer sozinha o trabalho de um exército e pode impulsionar artificialmente o número de visualizações de uma postagem ajudando a viralizar o seu conteúdo, gerando "likes" ou, nos casos mais comuns, o oposto, criando problemas para um concorrente ou adversário por apenas duzentos euros. "A internet é o instrumento da delação anônima, da fumaça sem fogo e do burburinho que corre sem que ninguém saiba onde começou".
"Disparar um linchamento midiático é muito mais fácil do que alavancar um burburinho positivo – ela garante que sabe fazer os dois, mas o momento atual privilegia a brutalidade. O homem que agride é o homem que se faz ouvir – é crucial escolher um perfil masculino para maltratar alguém. O único som que acalma os descerebrados que assombram os corredores da internet é o do carcereiro quebrando os ossos de um detento. Três comentários elogiosos sobre o primeiro episódio de uma série e os internautas começam a desconfiar que estão sendo manipulados, trinta comentários cruéis e todos acreditam. E o parvo sempre pode se dar uns tapinhas no peito 'a mim não enganam', e a partir daí já incorporou o que estavam querendo lhe transmitir. O desprezo se alastra que nem sarna." (p. 99)
As opções de Vernon começam a se reduzir drasticamente devido à morte prematura de vários amigos do passado, entre eles Alexandre Bleach, um superstar da música que costumava pagar as contas atrasadas de Vernon. Ele "tinha sido atingido pelo sucesso como quando se é atropelado por um caminhão", morreu afogado  em uma banheira de hotel com champanhe e comprimidos. É então que se espalha na cidade a notícia de que Vernon guardou algumas fitas gravadas com uma auto-entrevista de Alexandre Bleach pouco antes de sua morte, em uma das poucas vezes em que ainda se encontravam para consumirem drogas juntos.

Nesse ponto de sua vida, Vernon passou a ser uma pessoa difícil de ser encontrada porque conseguiu a invisibilidade dos moradores de rua e, agora, só tem duas preocupações, a primeira é não morrer de frio nas ruas de Paris e, a segunda, recuperar o amor de Marcia, uma brasileira trans que se tornou famosa como modelo. Pode ser que ele tenha uma chance agora que Pamela Kant, uma ex-estrela de vídeos pornográficos, conseguiu encontrá-lo, também interessada nas últimas gravações de Alexandre Bleach. Certamente, muitas surpresas ainda estão reservadas nos dois volumes restantes da trilogia a serem lançados no Brasil.
"Vai acontecer naturalmente. Laurent avisou que em um mês ele veria as coisas de outra forma. As pessoas se acostumam a tudo. Se surpreende que o que mais o atormenta hoje é não ter uma escova de dentes. Esqueceu a sua na casa de Patrice. Sua boca o incomoda. Sua situação lhe parece histórias de prisão. Sem direito a visitas nem advogado. Na espessa névoa que retarda seus pensamentos há alguns dias, ele se sente cada vez mais na pele de outro. Só Marcia continua a obcecá-lo. Ela é tanto uma felicidade incorporada a seu sangue, radiante e estrondosa, quanto uma lâmina cravada em seu peito." (p. 275)
Sobre a autora: Virginie Despentes é escritora e cineasta, e já trabalhou como empregada doméstica, prostituta e jornalista freelance de rock. Seu primeiro romance, Baise-moi, uma controversa história de estupro e vingança, foi publicada em 1992 e adaptado para o cinema em 2000. Após o lançamento, tornou-se o primeiro filme a ser proibido na França em vinte e oito anos. É autora de mais de quinze obras, incluindo Apocalypse bébé (2010) e Bye Bye Blondie (2004), e o ensaio autobiográfico Teoria King Kong (2006). Este primeiro volume da trilogia Vernon Subutex, publicado originalmente em 2013 e traduzido em mais de vinte idiomas, está sendo adaptado para a TV.

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