Mia Couto - Estórias abensonhadas

Literatura contemporânea
Mia Couto - Estórias abensonhadas - Editora Companhia das Letras - 160 Páginas - Capa de Alceu Chiesorin Nunes - Ilustração de Angelo Abu - Lançamento no Brasil: 2016 (9ª reimpressão).

É sempre um prazer renovado ler o moçambicano Mia Couto, vencedor do prêmio Camões 2013 e primeiro autor em língua portuguesa a ser finalista do Booker International Prize na versão de 2015. A sua prosa poética é inspirada na rica tradição do folclore africano em contraste com a dura realidade das ex-colônias, depois dos efeitos devastadores de um movimento de guerrilhas pela independência de Portugal (1961 a 1974), sucedido por uma longa e violenta guerra civil (1977 a 1992) que deixou o país em destroços. Este livro, lançado originalmente em 1994, segundo Mia Couto, reúne contos escritos depois da guerra, "entre as margens da mágoa e da esperança", quando tudo parecia indicar que Moçambique não conseguiria superar a destruição, no entanto, ainda citando a linda introdução do autor: "Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia golpear, lá onde a barbárie não tinha acesso."

Em Estórias abensonhadas novamente encontramos a força e a beleza da linguagem inventada por Mia Couto, cuja habilidade para produzir neologismos só é comparável ao do nosso grande João Guimarães Rosa. Assim, a chuva que cai depois de um longo período de seca é mais do que abençoada, é preciso criar uma nova palavra para imaginá-la de maneira completa: abensonhada. Essa chuva redentora é um símbolo do final do sofrimento do povo moçambicano, depois de anos de guerra a terra estaria "se lavando do passado".
"Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento? Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos. [...]" - Trecho de "Chuva: a abensonhada" (p. 43)
Em O cego Estrelinho, um argumento inesquecível: um cego conhece o mundo por meio das descrições extraordinárias de seu guia, um mundo imaginado que se torna muito mais interessante do que o mundo real. Quando o guia é convocado para o serviço militar, deixa a sua irmã Infelizmina como substituta, mas que tristeza, ela "não tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade." O cego perde toda a fantasia a que se acostumara com seu guia original, mas a vida lhe reserva uma surpresa.
"O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão era repartidamente comum, extensão de um no outro, siamensal. E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão. [...] Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que papaeira. [...]" - Trecho de "O cego Estrelinho" (p. 21)
É claro que, mesmo durante a guerra, o amor tem um importante espaço na poesia de Mia Couto, ainda que seja um amor estranho e inadequado como o que é descrito no conto Os infelizes cálculos da felicidade sobre a paixão de um professor de matemática por sua aluna, "menina de incorreta idade". Júlio Novesfora era um homem que sempre pensara que "Do ponto de vista da álgebra, a ternura é um absurdo. Como o zero negativo", contudo ele perde totalmente o domínio da lógica e dos rigores da geometria ao se apaixonar pela menina. 
"O homem desta estória é chamado de Júlio Novesfora. Noutras falas: o mestre Novesfora. Homem bastante matemático, vivendo na quantidade exata, morando sempre no acertado lugar. O mundo, para ele, estava posto em equação de infinito grau. Qualquer situação lhe algebrava o pensamento. Integrais, derivadas, matrizes: para tudo existia a devida fórmula. A maior parte das vezes mesmo ele nem incomodava os neurônios: '– É conta que se faz sem cabeça.' Doseava o coração em aplicações regradas, reduzida a paixão ao seu equivalente numérico. Amores, mulheres, filhos: tudo isso era hipótese nula. O sentimento, dizia ele, não tem logaritmo. Por isso nem se justifica a sua equação. Desde menino se abstivera de afetos. [...]" - Trecho de "Os infelizes cálculos da felicidade" (p. 93)
Mia Couto escreve poesia, contos, romance e crônicas. Conheça outros livros do autor resenhados no Mundo de K: Cada homem é uma raça, Mulheres de Cinzas, O Bebedor de Horizontes, Sombras da água, Terra Sonâmbula e Vozes anoitecidas. E, já que está por aqui mesmo, leia também as 20 citações para conhecer a sabedoria de Mia Couto.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As 20 obras mais importantes da literatura japonesa

As 20 obras mais importantes da literatura francesa

As 20 obras mais importantes da literatura italiana

20 grandes escritoras brasileiras

As 20 obras mais importantes da literatura dos Estados Unidos

As 20 obras mais importantes da literatura portuguesa