Chico Buarque - Estorvo
Esta é a edição comemorativa de 30 anos da publicação de Estorvo – primeiro romance de Chico Buarque e vencedor do prêmio Jabuti 1992 de romance do ano –, concebida como parte da campanha de lançamento de Anos de chumbo e outros contos. Portanto, graças à estratégia de marketing da editora, Estorvo ganhou um caprichado acabamento gráfico em capa dura e seleção de textos críticos da época de Benedito Nunes, Roberto Schwarz, Sérgio Sant'Anna, Marisa Lajolo, Augusto Massi e José Cardoso Pires, além de referências sobre o romance na imprensa nacional e internacional, revistas acadêmicas, teses e dissertações.
É interessante revisitar o livro com a isenção crítica de três décadas de afastamento, sem a inevitável pressão sobre o prestigiado músico e compositor para provar suas qualidades como escritor, de forma a percebermos como ainda permanece a sensação de uma obra moderna e desafiadora. De fato, a impressão de rompimento provocada na época do lançamento foi praticamente unânime na imprensa especializada, como resumiu Marisa Lajolo no Estado de S. Paulo: "Em Estorvo, a diluição de sentidos e o embaralhamento de tempos e espaços apagam de vez qualquer hipótese de happy end e criam um mundo inóspito, labiríntico, instável, sem saída..."
O romance tem início diante de um olho mágico e uma visita indesejada de um personagem do qual muito pouco se sabe, mas que provoca a fuga do narrador-protagonista em uma sequência de eventos que misturam alucinação e realidade. Em uma espécie de pesadelo, o narrador circula mais de uma vez pelos mesmos locais: o sítio da família, o condomínio da casa da irmã, o apartamento da ex-mulher, se envolve com traficantes de drogas e nada parece fazer sentido na sequência de ações dissociadas do tempo e do espaço. A crítica de Augusto Massi é muito precisa quando afirma que "Chico escreveu um romance realista, em sintonia com técnicas e recursos antirrealistas".
"Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto intumescido pela lente. Deve ser coisa importante, pois ouvi a campanhia tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho. Tem a barba. Pode ser que eu já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rosto. O terno e a gravata também me incomodam. Eu não conheço muita gente de terno e gravata, muito menos com os cabelos escorridos até os ombros. Pessoas de terno e gravata que eu conheço, conheço atrás de mesa, guichê, não são pessoas que vem bater à minha porta. Procuro imaginar aquele homem escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformação do olho mágico, e é sempre alguém conhecido mas muito difícil de reconhecer. E o rosto do sujeito assim frontal e estático embaralha ainda mais o meu julgamento. Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais você conhece a pessoa. Aquela imobilidade é o seu melhor disfarce, para mim." (pp. 11-2)
Um dos personagens importantes no romance é o amigo não nomeado, assim como todos os outros, que ele associa ao corpo de um professor de ginástica assassinado: "Os pés do morto ficaram descobertos" que remete à seguinte passagem: "Só não consigo lembrar dos pés do meu amigo. Vivíamos descalços, e não me ocorre ter olhado alguma vez aqueles pés". Como em tantas outras passagens do romance, é o leitor que deve encontrar algum sentido nas cenas relacionadas e muitas vezes recorrentes, mas algumas pistas são claras sobre a relação homossexual na amizade do passado que foi interrompida pelo casamento frustrado.
"Dois funcionários com jaleco do Instituto Médico Legal saem agora do edifício transportando o corpo, envolto em cobertores e lençóis, e quem está próximo, até mesmo o pessoal do bar, emudece. Chego a perceber o fluxo do silêncio, e é como um silêncio que viesse por baixo do chão, e o chão se enrolasse feito tapete que fosse abafando todos os sons até o outro lado da avenida. O corpo passa diante dos meus olhos. O primeiro funcionário, de nariz inchado, sustenta-o pelas axilas, deixando a cabeça pender como um saco. O segundo abraça-o por trás dos joelhos e, com seu passo incerto, franze e distende-o como um fole. Os pés do morto ficam descobertos, e são pés bem tratados, apenas as solas meio encardidas, mas são pés que me parecem enormes, são pés que deviam calçar quarenta e seis, quarenta e sete. O corpo é encaixado numa gaveta do rabecão. Eu esperei que pingasse sangue, mas não pingou." (pp. 53-4)
O narrador nem um pouco confiável, diga-se de passagem, é um estorvo para a família e a sociedade de uma forma geral. Por meio de uma série de referências, as suas perambulações pela cidade refletem situações sobre a violência do cotidiano no Rio de Janeiro, violência que não parece ter reduzido nos últimos trinta anos, muito pelo contrário. Um livro difícil e que ainda provoca desconforto. Fico com o resumo do saudoso romancista Sérgio Sant'Anna publicado na época: "Ponto para esse cantor e compositor de grande renome, que consegue a proeza de que não o reconheçam nesta obra, a não ser pela assinatura, e por uma das suas qualidades sempre bem observadas: o humor fino, muitas vezes cruel, mas em tudo ajustado ao drama brasileiro [...]"
"O ônibus é um calhambeque e sobe a serra superlotado. Vai passageiro em pé, perdi meu lugar na janela, meu vizinho de banco é corpulento, levo joias nos bolsos, estou sentado em pedras, mas viajo com uma sensação de conforto. Acho que é porque chove. O asfalto espelhado, o verde retinto, árvores como roupa torcida, essa estrada é minha. Numa curva intensa para a direita, sinto o ombro do meu vizinho de banco pressionando o meu, e rio por dentro. Rio porque me lembro de quando íamos para o sítio de carro com meus pais, eu e minha irmã no banco traseiro. Curva para o meu lado, e eu jogava o corpo para cima dela, fazendo 'ôôôôôôôô'. Curva para o lado dela, e era ela que caía para cá: 'ôôôôôôôô'. A lembrança me bate com tanta força que chego a sentir o cheiro da cabeça da minha irmã, que ela dizia que era do cabelo, e eu dizia que era da cabeça, porque ela mudava de shampoo e o cheiro continuava o mesmo, e ela dizia que eu era criança e confundia tudo [...]" (pp. 75-6)
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