Chico Buarque - Anos de chumbo e outros contos

Literatura brasileira contemporânea
Chico Buarque - Anos de chumbo e outros contos - Editora Companhia das Letras - 168 Páginas - Capa e Projeto Gráfico de Raul Loureiro - Imagem de capa: Solange Pessoa, 2008 - Lançamento: 2021

Chico Buarque faz a sua estreia no gênero de contos com uma antologia que reúne, em sua maioria, narrativas ambientadas na cidade do Rio de Janeiro, sempre com base no olhar irônico e bem-humorado do autor, tão característico do carioca e do brasileiro em geral. O bom humor é um elemento que tem estado ausente da crônica e da literatura contemporânea por motivos óbvios, exigindo cada vez mais técnica, imaginação e originalidade dos escritores para refletir sobre as nossas mazelas políticas, sociais e pessoais de forma leve. Este objetivo é alcançado com sucesso, mesmo ao descrever temas incômodos e que preferimos esquecer, como na estratégia de utilizar um narrador-protagonista ingênuo no conto que empresta o título ao livro.

Um bom exemplo desta abordagem leve que norteia todo o livro, está no conto O passaporte, no qual é muito fácil identificarmos o próprio Chico Buarque como personagem, nomeado ironicamente como "grande artista", ele está prestes a embarcar em um voo para Paris no Aeroporto Tom Jobim quando perde o seu passaporte e o cartão de embarque. Sempre um alvo predileto da antipatia de setores da extrema-direita política, o compositor e escritor se torna vítima de um ataque à sua identidade quando um estranho descobre a documentação esquecida no banheiro público e a atira na lixeira, provocando assim uma sequência de ações de consequências imprevisíveis e que evidenciarão o que existe de pior na condição humana.

"Ele não podia adivinhar que naquele instante um curioso abria um passaporte abandonado junto com o cartão de embarque na bancada da pia do banheiro. O indivíduo mal acreditou ao ver no documento o nome e as fuças do grande artista que ele mais detestava. De imediato detestou a ideia de que a celebridade fosse tomar champanhe em Paris, viajando no mesmo avião que ele. Pressentindo que o canalha voltaria ao banheiro a qualquer momento, num reflexo atirou passaporte e cartão na lixeira embutida na pia. As outras três ou quatro pessoas que estavam por perto não haveriam de ter notado seu gesto, pois num banheiro masculino ninguém se olha. Então o indivíduo puxou do toalheiro uma folha de papel-toalha para se assoar com força e a enfiou na lixeira. Não contente, arrancou mais um bocado de papel, protegeu a mão, arregaçou a manga e atochou o lixo no intuito de afundar mais e mais o passaporte. Não se privou de escarrar em cima da maçaroca." - Trecho do conto O passaporte (pp. 27-8)

Em Cida, encontramos uma situação comum na zona sul do Rio de Janeiro, uma moradora de rua com problemas mentais que sobrevive às custas das sobras dos moradores do bairro. O narrador acaba desenvolvendo um contato superficial com ela: "Nem bem eu despontava na praça, ela saltava do banco determinada a me acompanhar nas minhas andanças. Confesso que me dava um pouco de vergonha, porque no calçadão eu sempre topava com conhecidos [...]" Este contato superficial, mas recorrente, avança na medida em que se estabelece uma relação de confiança a partir de Cida, mas os delírios que a mantém isolada em um mundo particular se mostrarão como uma barreira intransponível para a inserção dela na sociedade.

"A Cida morava na praça Antônio Callado, endereço bacana a poucos passos do mar do Leblon. Na época em que eu caminhava no calçadão da praia, me habituei a vê-la duas vezes por dia, na ida e na volta para casa. Era uma mulher até bonita, apesar da pele rude e dos dentes maltratados; tinha entre trinta e quarenta anos e usava roupas de grife ao sol do meio-dia. Eram longos, tailleurs, pantalonas e até uma estola de lebre que as moradoras dos prédios ricos lhe doavam por caridade e por deboche. Também graças à vizinhança ela aproveitava sobras de refeições e tinha um travesseiro para deitar a cabeça no banco de cimento. Em noites de chuva dormia numa guarita abandonada na calçada do canal do Leblon, bem em frente ao seu jardim.  E nas águas não muito limpas desse canal fazia suas necessidades, se lavava e lavava suas roupas finas, conforme ouvi dos prédios no entorno. [...]" - Trecho do conto Cida (pp. 75-6)

Em Anos de chumbo, um menino que sofre os efeitos da paralisia decorrente da poliomielite é o narrador-protagonista deste conto ambientado na década de 1970, durante a ditadura militar. É por meio da visão ingênua de uma criança deficiente, brincando com seus soldadinhos de chumbo, que presenciamos detalhes da violência doméstica e também institucional exercida pelo pai, militar de carreira na época. Uma forma diferente para contar a mesma história que, talvez, preferíssimos esquecer por conveniência ou medo, mas isso seria muito perigoso.

"[...] Assim eu soube que era ele, o major, quem delegava ao capitão, meu pai, missões especiais que deveriam nos orgulhar, à minha mãe e a mim. Era uma tarefa dura e perigosa, porque ele enfrentava um inimigo traiçoeiro, e aqui não estávamos falando de soldados de chumbo. Pelo que pude depreender, meu pai lidava com prisioneiros de guerra, criminosos que tinham sangue de verdade nas mãos. Tamanha tensão devia mexer com seus nervos, pois ele voltava para casa com a mandíbula travada e sem mais nem menos pegava a bater na minha mãe. Acho que batia com mais força por lhe dar razão, pois assumia aos berros ser de fato um grande otário. Nesses rompantes, também me parecia que ele tinha alguma bronca do pai do Luiz Haroldo, seu colega de academia e de caserna, que era condecorado sem disparar um tiro, era destacado para missões secretas no exterior e em breve seria promovido a tenente-coronel, enquanto ele marcava passo na carreira, fazendo o serviço sujo nos porões. Quando o major chegava para o uísque, porém, ele lhe trazia o balde de gelo, lhe oferecia a poltrona de veludo e um pufe para esticar as pernas." - Trecho do conto Anos de chumbo (pp. 160-1)

Nas oito narrativas breves que constituem a antologia, Chico Buarque demonstra segurança e domínio do gênero, seja nos contos de inspiração contemporânea (Meu tio, O passaporte, Cida, O sítio) ou naqueles que revisitam o passado (Os primos de Campos, Copacabana, Para Clarice Lispector com candura, Anos de chumbo). Uma obra recomendada porque demonstra como a habilidade inata dos nossos escritores para escrever com bom humor e inteligência sobre temas difíceis permanece, mesmo em tempos sombrios, ponto para a literatura nacional.

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Compositor, cantor e ficcionista, Chico Buarque é autor das peças Roda viva (1968), Calabar, escrita em parceria com Ruy Guerra (1973), Gota d'água, com Paulo Pontes (1975), e Ópera do malandro (1979). Sua estreia na literatura foi com a novela Fazenda Modelo (1974), seguida do livro infantil Chapeuzinho Amarelo (1979). Ao publicar Estorvo (1991), seu primeiro romance, Chico se consagrou como um dos grandes prosadores brasileiros. Dele, além de Estorvo, a Companhia das Letras lançou Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite derramado (2009), O irmão alemão (2014) e Essa gente (2019). Em 2019, Chico Buarque venceu o prêmio Camões pelo conjunto da obra.

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