Mia Couto - O mapeador de ausências
Moçambique é um país que precisa lidar com a herança de um passado recente muito violento. Depois de uma guerra de libertação que durou cerca de 10 anos, tornou-se independente de Portugal em 25 de Junho de 1975, para iniciar em seguida uma guerra civil, semelhante à de Angola, que durou até 1992, com um saldo de um milhão de mortos em combates e também pelos efeitos da destruição do país que mergulhou em uma crise econômica sem precedentes, provocando a fome e o deslocamento da população.
O mais recente lançamento de Mia Couto é um romance com referências autobiográficas no qual ele lança um olhar a estes dois períodos da história de Moçambique, a fase final da guerra de libertação colonial e os efeitos atuais da guerra civil, para contar a história de um protagonista com muitas semelhanças a ele próprio. Diogo Santiago, um intelectual moçambicano, professor universitário em Maputo e poeta, retorna depois de muitos anos à Beira, sua cidade natal, às vésperas do ciclone que a arrasou em 2019, para receber uma homenagem e promover um acerto de contas pessoal com o passado.
Contudo, citando uma das epígrafes ficcionais do livro, do também poeta Adriano Santiago, pai de Diogo, "As lembranças tornam-se perigosas quando deixamos de as falsificar", e assim a narrativa se alterna entre o ano de 1973, quando Diogo recorda passagens da sua infância e da viagem que fez com o pai até Inhaminga, onde ocorreram massacres da população local cometidos pelo exército colonial, e 2019, quando conhece Liana – filha do inspetor Óscar Campos da PIDE, polícia política da época da guerra colonial – que lhe repassa uma série de documentos da época, os quais, ao longo da narrativa, misturam realidade e ficção.
"Estou de visita à Beira, a minha cidade natal; venho a convite de uma universidade. Desde que aqui cheguei, visitei escolas, reuni com professores e alunos, falei com eles sobre o assunto que mais me interessa: a poesia. Sou professor de literatura, o meu universo é pequeno, mas infinito. A poesia não é um gênero literário, é um idioma anterior a todas as palavras. Foi isso que repeti em cada um dos debates. Nestes dias, caminhei pelos lugares da minha infância como quem passeia num pântano: pisando o chão com as pontas dos pés. Um passo em falso e corria o risco de me afundar em escuros abismos. Eis a minha doença: não me restam lembranças, tenho apenas sonhos. Sou um inventor de esquecimentos." (p. 12)
Como sempre, a prosa poética de Mia Couto é norteada por citações inesquecíveis. Para aqueles leitores que têm o costume de fazer marcações, a força do texto nos faz esquecer o senso prático e a vontade é marcar parágrafos inteiros para futuras releituras. O autor nos ensina em seus livros que sabedoria e inteligência são coisas bem diferentes e, principalmente, que viver pode ser uma coisa simples e bonita quando a poesia nos faz esquecer a violência do homem contra o homem, seja na África ou no Brasil. Recorrendo a mais uma citação deste romance: "A arte maior do poeta é saber desperdiçar oportunidades".
"Esse contato seria feito, segundo ele, o mais urgentemente possível. Vivíamos, dizia, uma nova etapa da violência da guerra colonial. As autoridades portuguesas tinham retirado lições dos anteriores massacres e decidiram apurar o método: este novo massacre seria executado lentamente, tão lentamente como se, por um lado, não chegasse nunca a acontecer e, por outro, nunca parasse de suceder. Chama-se a isso o estratagema do relógio. O ponteiro dos segundos saltita tantas vezes que ninguém repara no seu movimento. Aqueles negros massacrados são o ponteiro dos segundos: ninguém repara neles, ninguém os contabiliza. Mas são eles que fazem o tempo." (p. 89)
Permeando toda a narrativa feita a partir de diferentes vozes, em contraponto ao realismo das guerras de Moçambique, está a história de Ermelinda, mãe de Liana, a quem chamavam de Almalinda e que, juntamente com o namorado, atirou-se ao rio, os pulsos amarrados por um arame, para que se um deles se arrependesse o outro o arrastasse. O motivo, absurdo como a guerra, é que eram de raças diferentes. Apenas Almalinda sobrevive ao trágico compromisso em uma espécie de realismo mágico sempre presente nos romances de Mia Couto.
"Que a morte seja perfeita: é isso que pedimos aos que partem. Para que ninguém tenha que esquecer aquele que foi vivo. E para que ninguém tenha saudade desse que partiu. / Assim sucedeu com Almalinda: morreu tanto e tão perfeitamente que foi como se nada acontecesse. Como se, no ato de morrer, a defunta arrumasse com irrepreensível zelo a sua futura ausência. Como se ela tivesse apagado a sua vida à medida que vivia. / Os outros, os imperfeitos mortos, deixam-nos a enganosa incumbência de serem lembrados. Ninguém está realmente com eles. Nas lágrimas que lhes dedicamos comove-nos apenas o nosso anunciado desfecho. / Almalinda, retirou-se com a mesma ausência com que sempre vivera. E apenas em mim se abate essa despresença." (p. 204)
Para conhecer outros romances de Mia Couto resenhados no Mundo de K: Cada homem é uma raça, Estórias abensonhadas, Mulheres de Cinzas, O Bebedor de Horizontes, Sombras da Água, Terra Sonâmbula, Vozes Anoitecidas.
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