Luiz Eduardo de Carvalho - Evoé, 22!
Luiz Eduardo de Carvalho é o autor de Evoé, 22!, roteiro de uma peça teatral extremamente rica em referências culturais e também muito bem-humorada, vencedora do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária – 2018 do Ministério da cultura, cujo tema foi os Cem Anos da Semana de Arte Moderna de 1922 e, em sequência, o Prêmio Maria Clara Machado (1º lugar) no Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira dos Escritores, assim como o Prêmio Aldemar Bonates no Concurso Literário Cidade de Manaus, referente ao período de 2019/2020.
A peça, definida pelo autor como "uma tragédia de costumes modernistas em dois atos", é ambientada em janeiro de 1922, poucos dias antes da famosa Semana de Arte Moderna de São Paulo que reuniu artistas plásticos, escritores e músicos com propostas de renovação em suas respectivas áreas de atuação, buscando a ruptura com o passado. Entre os principais nomes constavam Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Menotti Del Picchi e Heitor Villa-Lobos, para citar apenas alguns. Contudo, Luiz Eduardo não se limita às referências culturais nacionais, apoiando o seu texto em Freud, Marx e Baumann, allém de uma trilha sonora inspiradora, de Debussy a Stravinski com ecos do Trenzinho Caipira.
Neste contexto, três personagens organizam um evento paralelo de contestação ao modernismo. O Dr. Otto Salgado é o patrocinador, representante de uma elite conservadora que, como em todas as épocas, é refratária a qualquer tipo de mudança. Faustino Sucupira, o artista contratado para criar o espetáculo-manifesto, apresenta uma posição dúbia entre o apoio ao movimento modernista e a influência da cultura tradicional. Diego Mercúrio é um intelectual oportunista que muda a sua orientação estética de acordo com as conveniências do momento. A presença da quarta personagem, a negra e sensual Conceição, alerta sobre o abismo entre a sociedade aristocrática paulista da época e o povo sem o domínio elementar da linguagem culta.
"Verás apenas que, para haver arte moderna, não precisamos destruir tudo o que nos precedeu, meu jovem. Não podemos amaldiçoar a escola que nos educou, tampouco podemos nos desfazer do clássico em busca das novidades passageiras, emanadas das vanguardas que só olham para frente e acham-se inéditas por destratarem a tradição. Infiltram-se novidadeiras nos vãos da ignorância das massas alienadas das artes de antanho e brindam ao desinstruído público garatujas pueris de mulheres com cabelos verdes, homens amarelos, estudantes russas... O que é isso, agora? Ainda que Anita demonstre uma quantidade subliminar aos tons orientais, coisa ainda pior vem das máscaras africanas de Picasso, que os artistas brasileiros já transpõem em ícones mal assemelhados e deformados de nossos indígenas, dos negros importados a este país e, ainda pior, de ambas as proles miscigenadas. Um escândalo sem precedentes!" - Dr. Otto Salgado (pp. 15-6)
Uma questão central da obra é a validade de uma arte cerebral criada por intelectuais para intelectuais, o perigo de um artificialismo tão distante da realidade ou, ainda pior, de uma arte contaminada por uma visão preconceituosa e pretensamente religiosa do mundo como a do Dr. Otto Salgado que imagina Nietzsche como um pederasta, "revisionista ateu por trás daquele descomunal bigode a emprestar-lhe caricata masculinidade", mulheres que "foram feitas para tirar cria e delas cuidar" e a sua aversão às "excrescências cubistas", em sua opinião "exageros simbólicos que remetem às barbaridades que os freudianos querem impor como ciência, esses devassos judeus manipuladores do inconsciente e da sexualidade alheios".
"Agora falta bem pouco. A imensa pressão sobre teus ombros já se dilui! Nosso crescente afastamento aos polos de nossas crenças, experimentado nos últimos dias, dissolve-se na obra que compusemos e assinamos e datamos para a eternidade. Os demais serão consecutivamente esquecidos, talvez apenas não em decorrência da irreverência que marca esse modismo mascarado e barulhento. A Semana de Arte Moderna é apenas um Carnaval de uma lagarta aristocrática a exibir suas novas e coloridas asas burguesas num espasmo final de metamorfose. Nesse reino, contudo, eles são meros foliões e tu o único e eterno coroado Momo, com um braço dado à modernidade e o outro segurando o cetro da tradição! Seremos imortais , meu irmão, imortais. Nós dois, lado a lado. Evoé, Faustino Sucupira! Evoé!" - Diego Mercúrio (p. 30)
Faustino tem a visão da falência de um modernismo assustador, no qual chegaremos à era da reprodução em massa e tudo será reproduzido, até mesmo a arte. As pessoas enviarão mensagens públicas de suas "ilhas de solidão" e nesse dia – tão semelhante à nossa época – a modernidade terá sucumbido: "A marcha do individualismo causará a solidão, niilismo, hedonismo, consumismo, tudo equalizado em um comportamento reativo uníssono de busca pelos produtos do capitalismo que aliciará cada vez mais e mais consumidores contumazes devido suas carências. Esta será a derradeira secreção purulenta da modernidade que a sufocará de forma cabal, no âmbito local e mundial e, quando cada aldeia tornar-se global e aculturada, feita por solitários unidos apenas pelos simulacros de si mesmos, já não haverá identidades, senão uma única projeção reduzida à tábula rasa da média medíocre e condicionada pela chancela da aceitação e pela busca desenfreada por popularidade."
"Ah, que mundo líquido e paradoxal teremos, pois a privacidade e a intimidade serão as mais públicas de todas as coisas. As pessoas todas serão poetas sem metáforas e declararão as mais íntimas aflições em versos literais como nos diários de apontamentos de adolescentes de colégio, porém sem o segredo dos cadeados. Farão tudo solitária e publicamente, a fim de evitarem os transtornos das relações e dos convívios que já não serão medidas senão pelo choque dos interesses pessoais e do poder de desejo de cada uma delas. Exporão as vísceras, quem sabe os corpos, como essas moças nuas dos cartões franceses, porém não com intenção pornográfica, mas tão-somente a fim de estabelecerem um contato de intimidade que não há, que não houve e que, quem sabe assim, em alguma instância de suas fantasias dissociadas, poderá haver." - Faustino Sucupira (p. 92)
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