Rebeca Liberbaum - O coração e outras armadilhas

Literatura brasileira contemporânea
Rebeca Liberbaum - O coração e outras armadilhas - Editora Patuá - 152 Páginas - Capa, projeto gráfico e diagramação de Alessandro Romio - Lançamento: 2022.

Na urgência típica dos livros de estreia, a jovem carioca Rebeca Liberbaum apresenta uma variedade de estilos e temas em sua coletânea de contos O coração e outras armadilhas, mas todos com uma mesma origem, a emoção envolvida em nossas relações ao longo da vida, seja no sentido de força ou de fragilidade: amor, ódio, preconceito, perdas, enfim todas aquelas interações sociais que nos definem como seres humanos ou – infelizmente em alguns casos – nem tão humanos assim. Para isso serve a literatura, como Rebeca bem define: "na mão um isqueiro uma lanterna um clarão / na fração do momento / se ouve se sente se vê / o coração"

Com relação à forma, a autora mantém o interesse renovado do leitor com diferentes técnicas, algumas mescladas, por exemplo narrativas velozes, inteiramente na forma de diálogos (Parece o céu, não parece? / Vou morrer), fluxos de consciência dos protagonistas (Martelo / Até Sexta-feira), vozes narrativas em primeira pessoa (Quem é essa menina? / Berçário de estrelas / Blue Hole), em terceira pessoa (O homem que desenhava flores / Ola / Always), uma rara condução em segunda pessoa (Aleluias) e até mesmo uma tentativa experimental (Camarote).

Em Até sexta-feira, uma idosa repassa em um longo fluxo de consciência as memórias de toda uma vida enquanto se prepara para receber a visita da filha e dos netos, entre amenidades, programas de TV e a terrível dúvida: "hoje é terça-feira ou segunda-feira?", ela chega a refletir sobre um possível plano de suicídio que logo é refutado: "Tenho medo de virar um vegetal, entendendo tudo, sem conseguir me comunicar, ouvindo a fofoca das enfermeiras. Medo de tentar e não conseguir. Isso seria pior. Acho horrível pessoas que tentam com faca. Não gosto de sangue, não mesmo. Não gosto de bagunça, de nada que possa manchar o sofá. [...]"

"Minha filha vem pros meus oitenta. Acho que é esse ano. É. Dever ser. Estamos em 2019. Tenho quase certeza. Quando nos vimos da última vez ela disse que ia trazer os meus netos. Dois dos três. Ou um neto e o marido? Acho que eram dois e o marido. Faço anos em novembro, são três meses até lá. Quatro. Acho que hoje é terça, ela me liga na sexta. Aí eu pergunto que dia eles vêm, quem ela vai trazer etc. Hoje é terça, né? Amanhã vem Sônia, aí tenho companhia. Sônia conversa comigo bastante. É bom. Quartas são boas porque Sônia está. Sexta é bom porque Clarinha liga. Domingo é bom porque meu netinho liga. Às vezes ele esquece. É o caçula que liga, Gabriel. Ele é um doce. Quando eram pequenos eles vinham passar o verão comigo. Naquela época eu cozinhava, fazia arroz, feijão, farofa e torresmo. Gabriel chamava farofa de areia. Achava que comia areia. Era uma gracinha de menino. Bom, hoje é terça, né? Terça ou segunda? Ai, olha só. É segunda. Ainda faltam quatro dias até sexta. Até que Clarinha ligue. [...]" (pp. 43-4)

Já no conto Natan, a narradora intrometida tenta interferir e até mesmo criticar as decisões da autora em uma divertida e criativa inversão de papéis, um excelente gancho bem explorado, nas palavras da narradora rebelde: "[...] (deve ser um conto, Natan não é personagem rico o suficiente para ocupar mais de duas páginas, e eu digo rico em termos de densidade, e de qualquer forma a autora não é boa o suficiente pra escrever um romance, mas isso é outra discussão). Por outro lado, quem vai ler isso aqui? Pouquíssimos. Então talvez fosse até melhor contar nossa intimidade, quem sabe assim teríamos algum sucesso? Pornosoft vende. Mas a autora não procura sucesso. Faz por hobby. Quem não tem talento faz por hobby. [...]"

"Vocês podem ou não gostar do Natan, não tenho nada a ver com isso. Sou só a narradora, só vim explicar quem é Natan, não me importa se é herói, anti-herói, vilão. Nada disso me importa, sou apenas contratada. O Natan é o Natan é o Natan, e ele mora na realidade sem exageros de um conhecido da autora, não me confundam com a autora, lembrem-se, sou apenas a narradora e se eu tive um caso com o Natan foi só pra contar com mais detalhe e precisão. Foi a autora quem me mandou lá, precisávamos de mais material e tem coisas sobre ele um tanto inusitadas, vocês diriam impossível, isso não existe. Mas quando você conhece o Natan (e eu gostaria que vocês sentissem como se o conhecessem) você acaba se apaixonando. / Natan é um tampinha de nariz grego, moreno, desses baixinhos que vão à academia e ficam sarados em cima e magrelos embaixo. A primeira namorada dele se chama Gaia, o que achei um ótimo nome para um próximo personagem, mas a autora não concorda e não quer. A verdade é essa: ela pode escolher outra narradora (ou narrador) ou até mesmo escrever de forma onisciente (um trabalho penoso, não faço), ou produzir crônicas em que ela própria esteja falando, estamos num momento delicado, de crise, de muita competição, o melhor é eu ficar quieta e consentir. Como qualquer mau narrador tenho muita dificuldade em ficar quieta, deixar mais espaço pra vocês" (pp. 61-2)

Em Jenny, um conto que demonstra maturidade e segurança no desenvolvimento do tema, assim como personagens convincentes, a protagonista tenta esconder do marido – e dela própria – os incontornáveis efeitos da idade e das ondas de calor originadas pela menopausa. Durante um típico almoço de família de classe média com a nova namorada do filho, a ação ocorre verdadeiramente nas reflexões de Jenny, um bom exemplo de controle psicológico dos personagens. Acho que ainda vamos ouvir falar bastante de Rebeca Liberbaum, ótima estreia.

"Jenny sopra o absorvente Always pro esmalte vermelho secar mais rápido. Não é unha, pra que precisa secar? Enrola, dá pra ver o vermelho pelo algodão? Desenrola, entorna mais esmalte. Talvez uma tinta, uma aquarela teria sido melhor. Põe no lixo com cuidado, no canto ao lado da privada, escondido para ser achado facilmente, pro marido ver e sentir nojo, talvez até reclamar e Jenny dizer, desculpe foi sem querer, tava com pressa, da próxima vez enrolo no papel higiênico com mais cuidado. / Lava o rosto, põe um batom cor de romã, limpa os lábios, escolhe um batom mais neutro. Natural nude. Velha, está velha. A pele encarquilhada. Por que você tá com tanto calor Jenny? O marido havia perguntado, não, acusado, procurando o controle pra desligar o ar-condicionado. Foi aí que ela teve a ideia do absorvente. Pra ele não desconfiar. Pra ele achar que, sim, ela ainda é a mesma Jenny, não uma Jenny de ondas de calor, pele enrugada, meu Deus, até a vagina seca, uma Jenny que não pode mais ter filhos, uma Jenny que não é mais desejada, nem desejável." (pp.96-7)

Sobre a autora: Rebeca Liberbaum nasceu no Rio de Janeiro em 1990. É formada em Política, Filosofia e Economia pela Universidade da Pensilvânia. O coração e outras armadilhas é seu primeiro livro. 

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar O coração e outras armadilhas de Rebeca Liberbaum

Comentários

pausado tempo disse…
Excelente resenha sobre um ótimo livro!
Alexandre Kovacs disse…
Oi Valéria, que bom fico feliz que tenha gostado da resenha!

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