Mário Baggio - Antes de cair o pano
Mário Baggio é um especialista nas narrativas curtas. Seus contos normalmente não precisam mais do que dois ou três parágrafos para introduzir o tema, desenvolver a ideia e surpreender o leitor com finais perturbadores que me lembram a citação do mestre Isaac Bábel (1984-1940): "Nenhum ferro pode penetrar no coração humano de maneira tão gélida como um ponto colocado no momento exato". Neste seu mais recente lançamento, o autor apresenta alguns contos de maior extensão mas, independente do tamanho dos textos, o tema principal é sempre o comportamento humano em situações cotidianas, nas quais demonstra o seu melhor e o pior.
Entre os contos mais longos, destaque para os excelentes "O cu de Clarice" e "O amante dessa aí", ambos com um impecável protagonismo feminino que surpreende pela autenticidade; talvez por isso Baggio seja um escritor admirado por outros escritores, pela habilidade que demonstra em dar uma voz própria a seus personagens, lidando com a técnica e a emoção. Outro texto mais longo para os padrões do autor é "Antes de cair o pano", que encerra e empresta o título ao livro, uma história inspirada no isolamento da pandemia e, assim como outras da coletânea, na necessidade de fazer algo urgentemente, antes da chegada da "indesejada das gentes".
Com relação aos minicontos, achei melhor destacar três textos completos para passar uma ideia mais exata do estilo único de Mário Baggio. Deixo com vocês a prosa concisa, incômoda e, ao mesmo tempo, deliciosa de um escritor que precisa ser lido, principalmente em tempos de barbárie, pois sabe como poucos capturar os pequenos recortes de realidade que nos cercam e transformá-los em literatura. Afinal, "Quem, quando eu gritar, me ouvirá dentre os anjos?", como expresso no belo título de um dos contos que cita Rilke, lidando com a intertextualidade, ou seja, a superposição de um texto literário a outro, mais uma das especialidades do autor.
Caranguejos
Um conto de Mário Baggio
Era a hora em que a maré baixava e os caranguejos saíam de seus esconderijos para correr na areia e morder o que encontrassem. Era também a hora do meu passeio diário pisando o olho d'água. Quase tropecei por acaso na cabeça de um sujeito. Ele estava enterrado até o pescoço. Vivo. Vou repetir para que fique bem claro: havia um homem vivo enterrado até o pescoço na areia da praia, perto do olho d'água. Fiquei de cócoras a seu lado, observando-o, e ele me agradeceu a atenção. Quase chorou ao ver que alguém tinha aparecido para salvá-lo. Quando percebeu que eu não fazia nada para tirá-lo de lá, primeiro me dirigiu palavrôes, em seguida me prometeu dinheiro para ajudá-lo a se livrar.
Sinto muito, eu disse, enquanto espantava os caranguejos que se aproximavam. Pense o senhor no inusitado desta cena. Veja só, eu andava aqui na praia e encontrei um sujeito enterrado na areia, só com a cabeça de fora. Tem uns caranguejos em volta, querendo morder sua cara e seu pescoço e suas orelhas. Isso é uma coisa extraordinária, um fenômeno, tenho certeza de que jamais terei outra oportunidade na vida para ver algo assim.
Continuei a observá-lo por alguns minutos. Sorri algumas vezes para ele. Quando me cansei, desejei-lhe boa sorte e segui o meu caminho, olhando de vez em quando para trás.
O homem da casa
Um conto de Mário Baggio
Eduardo acorda cedo e, como de costume, não faz a cama. Não tem de se trocar, dormiu de roupa. Toma um café preto e ralo e sai de casa tremendo de frio. Não calçou o Nike, preferiu o sapato velho, já que sabia bem aonde tinha de ir. Como companhia, um cajado pequeno como seu tamanho, dois sacos vazios de supermercado e um lenço que sua mãe lhe amarra no pescoço. Em determinado momento esse lenço vai servir para cobrir seu nariz e sua boca: lá há gases, cheiros, micróbios e outras porcarias. Era o lenço de seu pai, agora é seu, pois virou o homem da casa. A mãe grita da porta: Não esquece de cobrir os olhos também e não respire a fumaça.
Depois de andar por mais de trinta minutos, Eduardo chega ao monte enorme. Percebe que está atrasado e quase não há onde fuçar: mais de cinquenta meninos chegaram antes e fuçaram primeiro. Mesmo assim, Eduardo cobre o rosto com o lenço, mete os pés no monturo e com o cajado espanta os urubus.
Rebentada
Um conto de Mário Baggio
Caminha ereta, embora isso custe e doa. Os dois meninos, de cabeças enormes e pernas finas, acompanham como podem o ritmo da mãe. Parecem frangos doentes ciscando inutilmente num terreno seco. Andam os três sobre uma terra rachada e poeirenta. O horizonte continua distante, tão distante quanto no dia em que iniciaram a jornada a pé. O sol permanece no alto, maltratando os olhos, a pele e a esperança.
O menor dos meninos, vencido pelo cansaço, senta-se numa pedra e curva a espinha para a frente, até que seu peito quase toque o chão. Visto de longe, parece uma fruta que apodrece aos poucos, mas de perto é só um menino cansado, sujo e com fome. A mãe o ajuda a se levantar e o carrega nos braços, como se levasse um punhadinho de folhas secas caídas de uma árvore, embora naquelas bandas não haja árvore, só deserto.
Levam já quatro dias andando, e ainda faltam mais quatro para chegarem ao campo de refugiados. O outro menino, mais velho e mais esperto, sabe que não vai aguentar. Resolve interromper a caminhada e põe-se de cócoras, as mãos sobre a cabeça. Neste caso não há diferença se visto de perto ou de longe: é um menino que desistiu.
A mãe põe o pequeno no chão e pensa. Avalia que será impossível avançar com os dois no colo, não terá forças. Levanta os olhos para o céu e chora sem lágrimas, rebentada por dentro. Sabe que vai morrer sob o punhal afiado da escolha, mas não hesita. Olha para um, depois para o outro e recomeça a caminhar, puxando só um deles pela mão.
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Antes de cair o pano de Mário Baggio
Comentários