Juliana Leite - Humanos exemplares
Depois do premiado livro de estreia, Entre as mãos, Juliana Leite consolida o seu nome na cena literária contemporânea com este mais recente lançamento, um romance muito recomendado que lida com temas difíceis como a solidão e a proximidade da morte de forma sensível e até mesmo bem-humorada, trabalhando sempre com a emoção sem cair na armadilha do clichê sentimental. Esta é a história de Natalia, uma idosa centenária que acumulou uma "coleção de ausências" ao longo da vida e passa os dias sozinha no apartamento à espera dos telefonemas da filha que mora no exterior. Todos os amigos queridos já morreram, cada um a seu tempo.
Vicente, o companheiro de toda a existência, também ficou pelo caminho e se tornou uma imagem no porta-retratos. Natalia descobre o valor das lembranças e o fato curioso de que a vida depois de certo tempo começa a acontecer mais no passado do que no presente: "Sempre há muito o que falar sobre a juventude, é impressionante como seguem acontecendo coisas nesse período da vida mesmo depois que tudo já passou há tanto tempo." A partir das lembranças afetivas de Natalia, a autora relembra também momentos difíceis da história do país como os anos da ditadura militar e a repressão política que forçou Vicente a se esconder.
"Ela abre os olhos para mais um dia e já não pode impedir a si mesma de se sentir um pouco livre, ela se sente assim, como alguém que dormiu numa rede fresca e acordou livre para escolher o que fazer em uma manhã comum. Quem olha de fora percebe que seus ossos despertaram firmes sobre a cama, mais ou menos firmes, e isso sim é uma surpresa. A quantidade de ossos que uma velha possui é um espanto, um assombro, porque afinal alguns humanos como ela sumiram, muitos já sumiram e até agora por algum motivo ela permaneceu, ela se sente assim, como alguém que permaneceu, por enquanto. / Como ainda não se apagou, como ainda existe mais ou menos como antes, membros, pele, pulmão, ela pode até confundir um pouco as coisas, achar que isso significa que é uma velha de sorte. Mas logo todos esses pensamentos se apagam porque está na hora de se levantar para passar o café, pronto, já está na hora de ela se vestir e fazer o de sempre, o de todos os dias, e a sorte não costuma ter nada a ver com isso." (p. 9)
Natalia e Vicente trabalharam como professores até a aposentadoria e aprenderam, na prática, a importância de evitar "a morte dos fatos, dos acontecimentos concretos pertencentes à história", mesmo aqueles mais terríveis, como destacado no texto: "a memória não precisaria sobreviver apenas aos mortos, mas também ao esquecimento dos vivos". Contudo, sempre há o risco não do esquecimento, mas do perdão: "Ela até perdoa algumas pessoas, especialmente se essas pessoas já estiverem mortas. É mais fácil perdoar os mortos do que os vivos nessas lembranças, afinal os mortos despertam muita benevolência, já os vivos nem sempre."
"Vicente está bem ali olhando do porta-retratos e concordando comigo. Ele foi por tantos anos um homem vivo que muitas vezes me esqueço de que ele já morreu e acabo agindo como se o homem ainda estivesse por aqui, tomando banho ou lendo revistas no banheiro. De vez em quando preciso me lembrar de que, é mesmo, ele já morreu. Agora Vicente mora dentro do porta-retratos, mora na fotografia em que ainda é um jovem Vicente em um verão em Petrópolis. Em vários momentos levo o porta-retratos pra cá e pra lá, do quarto para a sala e da sala para a cozinha enquanto espero o telefone tocar. Nessas horas fico contente por mim mesma, aliviada; vejo minhas mãos segurando o objeto onde está Vicente, vejo o homem tão amado ainda perto do meu corpo e digo, ah, aí está uma tarde em que essa velha não se sente competamente sozinha. Digo isso e percebo que a velha concorda comigo, ela aproxima ainda mais os dedos do rosto de Vicente." (p. 21)
A recente pandemia não é citada diretamente, mas sim como uma "ameaça exterior" que isola as pessoas e impede a visita anual da filha que mora no "oceano superior". Com raro domínio das técnicas narrativas, Juliana Leita alterna entre primeira e terceira pessoa, passado e presente, sem interferir no ritmo e leveza do texto. Um romance imperdível com personagens inesquecíveis, daquele tipo que provoca arrepios de emoção ao longo da leitura, principalmente no final, quando percebemos que a partir de um determinado ponto de nossas existências "o passado é o único futuro, o único lugar onde alguns encontros ainda acontecem."
"Sentada na sala do apartamento, a velha que hoje se acostumou a ser uma viúva, que talvez já possa até mesmo se dizer experiente, hoje ela se sente mais à vontade para fazer em voz alta algumas perguntas a Vicente, perguntas de toda sorte, por exemplo se o homem ainda tem fé lá onde vive nesse instante, não fé em Deus, a velha não se refere a isso, mas sim nos gatos, nas aves, ou até mesmo fé na humanidade. A velha se interessaria em saber se a essa altura o homem tem uma fé invertida, terráquea, emitida desde um lugar mais alto para este lugar aqui, mais embaixo. Ela gostaria de saber se a fé é uma coisa que acontece em todas as direções, com os mortos tendo fé nos vivos, e também gostaria de saber se os mortos ficam mesmo na parte de cima, lá onde nos acostumamos a imaginá-los, ou se ela vem olhando para o lugar errado desde sempre." (p. 194)
Sobre a autora: Juliana Leite nasceu em 1983, em Petrópolis, Rio de Janeiro. Seu romance de estreia, "Entre as mãos" (2018), recebeu os prêmios Sesc e APCA, foi finalista do prêmio Jabuti, prêmios São Paulo e Rio de Literatura e semifinalista do prêmio Oceanos, além de ter sido publicado na França e tido os direitos vendidos para o cinema. Mestre em literatura comparada, foi selecionada para a residência artística da revista Triple Canopy, de Nova York. Seus textos foram publicados em veículos como a revista Época, o jornal francês Libération, entre outros.
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