Sallié Oliveira - Grande casa à beira da estrada

Literatura brasileira contemporânea
Sallié Oliveira - Grande casa à beira da estrada - Editora Patuá - 168 Páginas - Projeto gráfico e diagramação: Alessandro Romio - Imagem de capa: Paul Cézanne - Lançamento: 2021.

O romance de estreia de Sallié Oliveira é uma obra sensível, construída com base em sutilezas e insinuações, apesar da inspiração na dor e na violência. O ponto de partida é a chegada de Jaque em uma grande casa no interior de São Paulo, o jovem está sendo acolhido para se recuperar física e emocionalmente de uma experiência traumática que sofreu em sua própria casa, junto à família e que somente será revelada aos poucos por meio de passagens ao longo da narrativa: "Jaque acreditava que depois de vinte anos não haveria novas dores para experimentar. Na vida adulta, tudo se tornaria um ciclo de repetições em todas as áreas." 

A grande casa, em uma região no interior de São Paulo, é comandada pela matriarca Rosa que cuidará com carinho de Jaque. O espaço isolado e protegido, afastado de tudo, parece ser ideal para não pensar sobre o passado e simplesmente curar as feridas: "Jaque esteve a ponto de rir ao se perceber naquela casa à beira da estrada; completamente à beira. Ele, que nos gritos dados, explosivos arranhando a garganta, fora ao limite de si, agora estava à beira – completamente à beira." No entanto, ao participar da rotina da casa e da convivência com Rosa, sua nora e neta, Jaque se verá envolvido em novas situações de confronto e violência.

"Havia algo de novo naquela dor. Era um ineditismo que deixava o restante do corpo em alerta, tornando-o espectador. Os músculos comprimiam-se, multidão afobada; apertavam-se diante do palco. Precisavam descobrir de onde vinha aquela dor que tanto comunicava, capaz de sitiar um homem para si. Este fechava os olhos para percebê-la, quase apreciando as ondas de tremor atravessando-o. Assim permaneceu, durante todo o caminho, esquecendo lá fora as luzes da cidade que em vão tentavam alcançá-lo através da janela do carro. Naquela noite, elas, as luzes da cidade, não importavam. A dor, estrela debutante neste espetáculo, importava. Não desabrochava de um único canto, florescendo pelo corpo. A dor nascia no desconhecido, e no desconhecido Jaque navegou em busca de seu destino." (p. 11)

A fictícia Tenância, cidade mais próxima da grande casa, teria sido fundada há duzentos anos por João Medeiros, um dos soldados que acompanhava Pedro I, depois do famoso grito de independência às margens do Ipiranga, sem dúvida um outro contraponto com a situação de rompimento vivenciada por Jaque: "Havia, então, uma cidade desconhecida por perto. A grande casa não ficava totalmente à beira do nada [...] Perto de Tenância, estava distante do grito que dera em São Paulo, aos ouvidos e às caras de sua gente, tremendo em lábios machucados. Ali, assim como o soldado João Medeiros, poderia descansar a exaltação da exclamação."

"Ser parede é simples. Ser humano dá trabalho. Ser natureza dá trabalho. Ser bicho dá trabalho. Parede vive para si, pensa por si. Pode ser deixada de lado, abandonada, apodrecer sem os cuidados dos que restauram tijolos e pintam a velhice de novas cores. Ser humano é muito complexo, muito trabalhoso. O humano pensa por si e pensa pelo próximo humano; pensa por si e pensa pela natureza; pensa por si e pensa pelos bichos, pelo que os bichos querem e do que os bichos não precisam. Ser humano é atentar contra o princípio individual do universo, porque o humano nunca se faz em indivíduo. O humano nunca está em seu lugar, ou somente em seu lugar. O humano põe-se de quatro sob o olhar dos cachorros; aterrado com as rochas ou espalhado pela areia da praia. Humano sai do corpo pele-músculo que tem para ser as nuvens e entender como se sentem as nuvens. Ser homem é ser todo o resto. Dá trabalho. É muita tarefa. Ser parede, não. Ser parede é se saber em pé, em formato e altura, e assim se entender. / Parede não quer quebrar constantemente o siêncio. / As paredes secas estavam conformadas. Formavam uma grande casa à beira da estrada, pronta para se sustentar casa até que o tempo desintegrasse a matéria. Ou se sustentar casa até que o humano desconstruísse seus quadrados e retângulos no martelo. Ou no fogo. / Uma parede não cai sozinha." (p. 31)

A grande casa é mais um dos personagens do livro e uma outra provocação do autor – que não pode passar despercebida – é a inversão no título, criando um parelelo com o clássico Casa-Grande & Senzala na ocupação de espaços negados historicamente às minorias, uma vez que Jaque é negro e a matriarca Rosa é descendente dos povos originários daquela região: "Falar português me cansa. É uma língua bonita eu sei. Mas não é a minha. Meu pai fez questão de não nos deixar esquecer disso. Ensinou-nos tudo o que pôde nos fundos de nosso quintal. Disse que era nossa tarefa que deixássemos vivas as palavras de nossos ancestrais."

"A grande casa ficava em frente ao portão velho que separava a rodovia asfaltada da estradinha de terra e das matas que borravam seu contorno. Majestosa, crescia em tamanho quando associada às casas menores, depois da trilha. Estavam em turma, no retângulo que as compunha. Tinham sua ocupação variada durante o ano. Em algumas estações, eram ocupadas por parentes que pediam abrigo naquele lugar onde o tempo parecia não chegar, mesmo visível na deterioração dos móveis e na coluna das paredes. Rosa, proprietária daquelas linhas, permitia que o aparentado e seus conjugados fizessem morada por quantos prazos a necessidade pedisse. Não ficavam muito, pois as desavenças cada vez mais constantes os espantavam. Mesmo as árvores e seus falatórios indecifráveis faziam-se de assombração aos desacostumados." (p. 49)

Literatura brasileira contemporênea
Sobre o autor: Sallié Oliveira é prosador e poeta. Filho de pais nordestinos, nasceu em Diadema e atualmente reside em São Bernardo do Campo, em São Paulo. É autor das coletâneas de poemas “Elizabeth & João Pedro” (Menção Honrosa no Prêmio Nascente, 2018) e “Guerra no Corpo do Homem” (Proac Expresso Nº 19/2020, São Paulo). Em 2020, foi Menção Honrosa no IV Concurso Literário Abrace Um Autor, categoria crônica, com “Poemas Doces e Poemas Salgados”. No mesmo ano, dirigiu o curta-metragem “Minha Mãe e Meu Pai Descobrem Meus Versos” (edital 005/2020 – Fundo de Assistência à Cultura, SBC). Em 2021, foi finalista do 17º Prêmio Barco a Vapor com “Ana, A Mãe de Ana e Ana de novo”. Em 2022, lançou “Guerra no Corpo do Homem” (Ed. Patuá), sua primeira coletânea de poesia publicada. “Grande casa à beira da estrada” foi publicado com o apoio da Lei Aldir Blanc de São Bernardo do Campo.

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