John Updike (1932-2009)
Poderia iniciar este texto afirmando que John Updike, um dos maiores escritores da literatura norte-americana, morreu no dia 27 de Janeiro, aos 76 anos, mas isto seria uma grande tolice; todos nós sabemos que os grandes autores não morrem jamais, eles são imortais assim como suas obras. Também é verdade que não existe homenagem maior para um escritor do que citar e reler os seus livros, pois que assim seja.
Gostaria de citar alguns trechos de uma sequência inesquecível, incluída no romance Coelho Corre, parte da tetralogia sobre a vida de Harry Angstrom: Coelho Corre (1960), Coelho em Crise (1971), Coelho Cresce (1981) e Coelho Cai (1990). As partes abaixo foram extraídas do capítulo onde a mulher de Harry, abandonada durante a madrugada, fica só no apartamento com o bebê e o filho pequeno. Ela começa a beber e a coisa toda acaba em tragédia. Não é possível evoluir muito com um tema assim no ambiente de um blog, mas serve como exemplo do trabalho de John Updike. Omiti a parte final, pos é muito chocante.
"As últimas horas são como se ela tivesse que passar com seus pensamentos por uma curva apertada num cano e não conseguisse. A toda hora ela chega no ponto em que ele diz para ela 'Vire pro outro lado´ e não consegue passar, não consegue sentir pânico nem sufocamento (...) Coloca no copo dois dedos de uísque, com pouca água porque senão ia levar muito tempo para beber, e sem gelo porque se fôsse tirar o gelo da fôrma com o barulho as crianças podiam acordar. Vai com sua dose de uísque até a janela e fica olhando por cima dos telhados cobertos de piche da cidade adormecida (...) Ela sente a rotina do dia de trabalho se aproximando como um exército de luz, sente as casas de bordas escuras lá embaixo potencialmente despertas, abrindo-se como castelos de onde vão sair homens, e é um pena seu marido não conseguir entrar neste ritmo que mais uma vez recomeça (...) Entra na cozinha e prepara outro drinque, mais forte que o primeiro, pensando que afinal de contas já é tempo de ela se divertir um pouco. Não teve nem um momento de descanso desde que voltou do hospital (...) Ainda resta um terço da garrafa. O cansaço faz arder as pálpebras ressecadas, mas ela não tem vontade de voltar para a cama. A cama lhe inspira horror porque Harry devia estar deitado nela. Esta ausência é um buraco que se alarga, e ela põe um pouco de uísque dentro dele mas não basta, e quando ela vai até a janela pela terceira vez já está claro o bastante para ver como é desoladora a paisagem (...) Liga a televisão, e a faixa de luz que brota de repente no retângulo verde desperta felicidade em seu peito, mas ainda é cedo demais, a luz é só um brilho sem sentido e o som é só um chiado (...) Quando pega o bebê outra vez, sente as perninhas molhadas e pensa em trocar a fralda mas sensatamente se dá conta de que está bêbada e pode machucá-lo com os alfinetes. Fica muito orgulhosa de ter tido esta idéia e diz a si mesma que não vai beber mais para poder trocar a fralda do neném daqui a uma hora (...) ela vai à cozinha e prepara um drinque, quase que só gelo, só para fechar de vez o grande buraco que está ameaçando se abrir dentro dela outra vez. Bebe um golinho só e é como um raio de luz azul que faz tudo ficar claro. É só aguentar mais este intervalo que no final do dia Harry estará de volta (...) O líquido amarelado derrama-se sobre os cubos de gelo fumegantes e não pára quando ela manda parar; ela retira a garrafa irritada, e gotas grandes pingam na pia (...)".
Comentários
Abraço
Confesso que só conhecia Updike de nome. Assim que vi a notícia, fui atrás de informações sobre as obras dele e fiquei muito interessado nessa tetralogia. O trecho que você colocou é excelente.
Este é sem um dúvida um dos episódios mais pungentes de todos os livros que li até hoje. Recordo-me que quando o li, a minha filha I. (hoje com 5 anos e meio) tinha na altura meses, senti uma grossa lágrima a correr uma das minhas faces a que se seguiram outras. É este o poder da Literatura (assim grafada), era este o poder de Updike: colossal, arrebatador, parecendo cruel, era de humanidade extrema.
Um grande abraço,
André
PS - recordo-me também de nessa altura ter contado esse episódio à minha mulher, ela sentia o meu profundo arrepio e o embargo da minha voz, comecei assim: "Imagina que..."
Impossível não pesquisar sobre o "John", que por desconhecer, até confundi com o "John Mortimer", divulgado no blog amigo "Peregrina Cultural".
Novos conhecimentos amigos.
Boa viagem!
Ah, achei agorinha isto aí (Updike por McEwan):
http://www.guardian.co.uk/books/2009/jan/31/john-updike-ian-mcewan-usa-american-novel-rabbit
Seu artigo está excelente. Consegue cativar a curiosidade de quem ainda não conhece ou pouco conhece a obra de Updike, inclusive a minha, pois só li "In the beauty of lilies" a mais de 10 anos atrás.
abraço das letras
Marcos
Mas parece que estamos em sintonia. Voce terminou o "Viagem do Elefante" e eu o "Todos os Nomes." Agora voce com o Pamuk e eu terminando essa semana o "Meu nome eh Vermelho!"
Grande abraco, Chico.
JU
Pois é, os bons autores nunca morrem.
Obrigada pela dica do livro.
Bjs,
Anny
Magnífico este trecho que você nos trouxe, vou procurar conhecê-lo melhor.
Um grande abraço.
Como você não tem caixa de recados, qui vai o meu para você.
Escrevi um texto dizendo como os comentaristas são importantes e que eles fazem parte do corpo e da alma de um blog. Como você é um dos meus queridos, está lá na minha preciosa lista.
Beijos,
Bom fim de semana.
Anny.
Um beijo de 30 min no meio do caos da cidade com trajes invertidos, despertando várias reações nos portugueses...
E como já dizia Nietzsche, "(...) no meio do caos, surge a estrela bailarina (...)"
Não é vírus... é um video do Youtube.
Bjux.
http://www.youtube.com/watch?v=9ocbKS6YzLo
POEMA
Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos - da - ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó -
dos - andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.
Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.
Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.
Fonte:
http://www.culturapara.art.br/opoema/ferreiragullar/ferreiragullar.htm
Boa semana!
Uma voz
Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando
Para John Updike faltou apenas o Prêmio Nobel de Literatura, que, sem dúvida, merecia.
Foi um escritor extraordinário. Estava no mesmo patamar que o melhores romancistas estadunidenses, como, por exemplo, Faulkner, Hemingway, John dos Passos, entre outros.
De sua obra sobre ensaios e crítica, destaco "Bem Perto da Costa", publicado em 1991 pela Companhia das Letras.
Essa mesma editora publicou um excelente romance de Updike, em 1995, "Memórias em Branco". Um livro que merece ler lido.
Um abraço.
Pedro Luso.