Adriane Garcia - Arraial do Curral del Rei
O Arraial do Curral del Rei, originalmente uma Freguesia da Comarca de Sabará, situava-se no local onde, em 1897, foi implantada a cidade de Belo Horizonte, nova capital do Estado de Minas Gerais, planejada e construída em substituição a Ouro Preto. Na época, os habitantes do povoado do Arraial comemoraram o projeto como uma vitória, mas logo perceberam que não haveria lugar para eles na cidade de largas avenidas e teatros que se imaginava construir ali e que logo todos seriam despejados e afastados para permitir o surgimento da nova capital mineira, inspirada em modelos europeus.
A história oficial da primeira cidade planejada após a Proclamação da República não faz referência a esse povo que foi excluído porque, de certa forma, era incompatível com a imagem que se pretendia associar ao progresso, mas os versos de Adriane Garcia, a partir de personagens ficcionais, como a Donana, Zé dos Anjos, Preta Rosa, Emerenciana, Josina e o velho Tião, para citar somente alguns, deram vida e voz a essa gente esquecida no tempo, que os manuais de história e sociologia tentaram esconder e, quem diria, a poesia resgatou.
Tangidos os bois
Suas patas amassam o barro
Depois das chuvas
Manso mugido trazendo
Todos os mugidos do mundo
Portal do antes e do depois
Dos bois
Canga dos homens sob o disfarce
De atrelar animais
Carroça/ Carpinteiro/ Abate/ Couro/ Martelo
O primeiro som do universo:
O rangido arrastado
Do eixo oprimido da roda.
Como fica claro no exemplo acima, os poemas são lindos e de grande força e sensibilidade quando lidos isoladamente, porém quando a narrativa em versos de Adriane Garcia forma um conjunto, o final dramático do Arraial ganha ares de epopeia. Nessa história, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, lema da Revolução Francesa, não guardam qualquer semelhança com o processo de "higienização" do início da nossa República no século XIX.
Na reunião ficamos todos esperando notícia
A reunião fechada com eles
A gente já chamando Cidade de Minas
A gente, não, a gente que eu falo são eles
Depois a algazarra toda morria
Ninguém, nenhum de nós pôde acreditar
De imediato, que tudo era mentira
Que teríamos que sair, que iam derrubar as casas
De boca em boca
A gente foi logo sabendo
Um pânico, um não sei o que falar
Um disse me disse e um mau pressentimento
Ainda não sei, foi um abatimento de morte
A primeira das que se seguiram
Sendo que antes
Também a gente já vivia morrendo
Uma história que, infelizmente, ainda continua ocorrendo no nosso Brasil contemporâneo, onde a divisão entre a cidade formal e as favelas na paisagem urbana é uma realidade que não pode ser ignorada. Mas, afinal, para onde foi essa gente do Arraial que já não tinha nada e perdeu tudo? Esta é a pergunta que o livro coloca e uma bela e possível resposta está na emocionante dedicatória da autora: "Àqueles cuja voz nenhuma memória salvou, a minha imaginação."
Sem mãos pro trabalho, sem força nas pernas
O velho Tião, no meio da mata
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
Choupana de barro, batido na vara
Caindo aos pedaços, casa de cupim
Comendo farinha, molhada na água
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
Lá vai Tião rumo a Deus sabe quando
Lá vai sem sapatos, que Tião nunca tem
Trouxa de pano, camisa e duas calças
A roupa do corpo e a gamela quebrada
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
O sol escaldante, cavalo nem boi
As terras de Tião eram do coronel?
Que ainda debocha e soa a bravata:
Como perdeu tudo
Se não tinha nada?
O livro faz parte da coleção BH. A cidade de cada um, um projeto que já completou quinze anos, sempre convidando autores para contar a história de um determinado lugar e época de Belo Horizonte com base nas suas recordações pessoais e escolhas afetivas.
Sobre a autora: Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da República, com destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas para adulto perder o sono (Biblioteca do Paraná, 2013), que foi vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, O nome do mundo (Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015) e Garrafas ao mar (Penalux, 2018).
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