Rafael de Oliveira Fernandes - Baseado em fantasmas reais

Literatura brasileira contemporânea
Rafael de Oliveira Fernandes - Baseado em fantasmas reais - Editora Patuá - 192 Páginas -  Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação de Leonardo Mathias - Lançamento: 2019.

Em seu mais recente romance, Rafael de Oliveira Fernandes faz com que os personagens compartilhem um mundo paralelo no qual vida e morte se confundem em um estado de permanente suspensão. O narrador-protagonista sofre com a angústia causada pela busca da mãe desaparecida quando ele e a irmã, Carolina, eram ainda adolescentes e a indefinição sobre o que de fato aconteceu no passado é um fantasma que os persegue desde então, afinal: "Quem morre, ou não está por perto, sobrevive na vida dos outros, ainda que, muitas vezes, na forma de fantasmas."

A descoberta de um antigo caderno de anotações da mãe sobre sonhos, incluindo a narrativa de uma mulher que repentinamente decide abandonar tudo e fugir de casa nua, faz com que os dois irmãos renovem as esperanças de que a mãe ainda possa estar viva, contudo uma nova perda irá assombrar o personagem principal quando Carolina entra em um estado de coma, ela própria se transformando agora em um fantasma: "Uma existência que em tudo era igual à morte. Ela era apenas um corpo, um corpo vazio, e seria assim nos próximos anos. Minha mãe, cujo corpo não se sabia onde estava, passava a ser uma memória, mas uma memória viva."
"A história da minha mãe recomeçara há cerca de três anos. Minha irmã estava em sua casa na Vila Mariana, onde morava sozinha, revendo alguns pertences de minha mãe. Eram objetos e roupas dos quais não nos havíamos desfeito quando ela morrera. Isto é, quando haviam declarado que estava morta, depois de anos sem qualquer notícia, sem sabermos se voltaria para nossa antiga casa. A Carolina, mudando algumas caixas de lugar para abrir espaço no guarda-roupa, encontrou um caderno e nele anotações da nossa mãe, algumas referentes a sonhos, outras a pensamentos que lhe ocorriam durante o dia. E, entre todas essas anotações, a história curiosa, quase uma narrativa, em que minha mãe parecia ter-se demorado algum tempo a mais, tomando um pouco mais de cuidado, e que lembrava muito a versão da polícia após examinar a casa e as possibilidades que fariam desaparecer uma mulher com cerca de quarenta anos, que cuidava sozinha dos filhos e, entre um e outro serviço, tentava sem sucesso a carreira de atriz." (p. 15)
A lanchonete "Anos Dourados" é um símbolo deste mundo paralelo que permanece em suspenso, ligação entre a nostalgia de um passado distante e a melancolia do presente, um local onde os funcionários atendem fantasiados de estrelas dos anos sessenta e decorado com mesas montadas com para-brisas e assentos acolchoados como se fossem automóveis antigos. Lá o nosso protagonista conhece e se identifica com uma jovem chamada Nina que circula diariamente pelas ruas do bairro à procura do seu gato fugitivo.
"O texto que encontramos no caderno da mãe era simples, falava de uma mulher que estava entediada, uma mulher como quase todas as outras do bairro que, de repente, numa epifania, desejava deixar aquilo tudo para trás. Falava em começar o texto, não em acabar. E, no entanto, a única coisa que eu entendia é que, de uma forma ou de outra, ficaria esquecido tudo aquilo que, durante anos, eu havia imaginado sobre a minha mãe. O que existia entre o período em que ela ainda estava com a gente e depois de encontrarmos o caderno. Eu havia lido cada frase, tentado decifrar cada interjeição, tentava achar um motivo, um destino provável para aquela personagem angustiada. Minha mãe falava, no texto, de uma pessoa que havia começado as tarefas da manhã há pouco. Tomava café da manhã, arrumava a cama, assistia a um dos diversos programas matinais sobre variedades e ia tomar banho até decidir que não queria fazer isso nunca mais." (p. 21)
O autor desenvolve alguns temas difíceis como são os fantasmas de nossas perdas, mas com um estilo direto e visual, que se lê com velocidade. Percebe-se a influência de Haruki Murakami, seja pela atmosfera de um mundo alternativo nas brechas do cotidiano das grandes metrópoles ou a presença dos gatos, criaturas mágicas que podem transitar entre os dois mundos, presença constante nos livros do autor japonês. Outra semelhança é o bom gosto musical nas citações da narrativa, truque que funcionou bem neste romance com bandas clássicas dos anos sessenta como: Doors, Beach Boys e Rolling Stones. 
"Donatello era o nome do gato da Nina. Não porque gostasse do escultor italiano que viveu na Renascença. Mas porque Donatello era o nome de uma das tartarugas ninja no desenho a que assistia quando criança. As outras três eram Michelangelo, Rafael e Leonardo. Todos artistas renascentistas. De início, achei irreal que procurasse um gato com tanta obstinação. A diferença entre procurar minha mãe, ao passo que alguém procurava um gato, representava o mesmo abismo que havia entre o Donatello escultor e o personagem do desenho animado matinal. A convivência com a Nina mudou essa visão um pouco. A forma como falava do gato, a maneira como procurava me cativar, ainda que, de início, eu fosse mais um daqueles desconhecidos a quem ela mostrava a fotografia do Donatello e perguntava se o havia visto. Acho que o fato de eu também procurar, no caso, minha mãe, acabou unindo duas pessoas tão diferentes, quase de diferentes eras como se uma habitasse a Renascença e outra, o século XXI." (p. 47)
Sobre o autor: Rafael de Oliveira Fernandes, nascido em São Paulo, capital, em 1981, formado em Direito pela USP, autor dos livros de poesia "Menino no telhado" e Cadernos de Espiral (editora 7letras), e do romance "Vista parcial do Tejo" (editora Patuá).

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