Milton Hatoum - Pontos de fuga

Literatura brasileira contemporânea
Milton Hatoum - Pontos de fuga, volume 2 da trilogia O Lugar Mais Sombrio - Editora Companhia das Letras - 312 Páginas - Lançamento: 04/11/2019.

Assim como no primeiro volume da trilogia (A Noite da Espera - Ler aqui resenha do Mundo de K), Milton Hatoum continua se valendo de múltiplas vozes no tempo e espaço ao alternar trechos de diários e cartas dos personagens, que assumem o controle narrativo – quase como em um romance epistolar – e descrevem as experiências de Martim e seus amigos em três cidades: Brasília (1968 a 1973), onde ele cursou o colégio e parte da faculdade; São Paulo (1973 a 1977) para onde fugiu após a prisão de alguns amigos em Brasilia e, por fim, Paris (1979 a 1980), onde vive como exilado político, lembrando e escrevendo sobre o passado no Brasil.

Esta segunda parte da trilogia corresponde à época em que Martim retorna para São Paulo, cidade onde nasceu e passou a infância e também onde ocorrerá a perda da ingenuidade que coincide com o período mais difícil da ditadura militar. Ele passa a morar em uma república de estudantes na Vila Madalena, próximo à faculdade de arquitetura da USP. As experiências e conflitos de um grupo de jovens que mora nessa república, nem todos ligados aos movimentos de resistência estudantil, mas sob os mesmos efeitos da opressão do Estado ou da família, formam a estrutura deste romance de formação durante os Anos de Chumbo do governo militar.
"Sergio San me mostrou os dois quartos do andar superior: à direita, o escritório do Ox; o outro, vazio, dava para a rua Fidalga. A sala no térreo fora diminuída por dois cômodos contíguos, portas de correr teladas; na área pequena e retangular da sala havia uma poltrona preta, uma estante com livros, discos e um aparelho de som; um tapete persa, um tatame e almofadas vermelhas cobriam os tacos do piso. Sergio San abriu devagar a porta de um quarto e me apresentou a duas moças: Marcela manuseava um alicate e fios de metal prateados; Laísa acendeu um bastão de incenso e me encarou com ar de desafio." (p. 28) FAU, Cidade Universitária, São Paulo, 22 de fevereiro, 1973.
O título pode ser uma referência à faculdade de arquitetura, mas também uma lembrança sobre as formas de fugir de um ambiente de repressão política, incuindo aí o exílio que, por vezes, pode ocorrer dentro do próprio país. Lendo os diferentes textos dos amigos, sempre permeados por citaçoes sobre arte e literatura, acompanhamos a trajetória claustrofóbica do solitário Martim na cidade de São Paulo, longe de Rodolfo, o pai opressor que ficou em Brasília, da namorada e atriz Dinah, e ainda em uma busca compulsiva pela mãe Lina, desaparecida misteriosamente.
"Grupos de estudantes vinham da Sé, vaiavam os soldados e se dispersavam; subi a Consolação, passos trôpegos, talvez mais um trago de vodca no Riviera, um filme no Belas Artes, quem sabe uma peça. Uma mulher na calçada pichava o muro do cemitério, um cara saiu de um lugar mais escuro, escreveu outra palavra e lançou para o alto o tubo de spray, que caiu no lado dos mortos. Ergui a cabeça, vi uma cruz e um anjo de pedra, me aproximei das palavras pichadas, li 'assassinos' e 'covardes'. Os dois saíram em disparada; quase por instinto apressei o passo, sentia ânsia e tontura e, quando eles alcançaram o fim do quarteirão, eu já não duvidava se a mulher era ela: os ombros largos, a coragem nos gestos e no corpo todo, o mesmo modo de pichar palavras de protesto, as letras espaçadas escritas da direita para a esquerda, como ela fazia em Brasília e nas cidades-satélites do DF." (p. 200) Praça da Sé e Cemitério da Consolação, São Paulo, outubro, 1975.
Milton Hatoum trabalha com a ficção e a memória para nos fazer refletir sobre uma época sombria, não com o rigor científico de historiador, mas sim evidenciando as dificuldades de uma geração que precisou amadurecer em um ambiente político autoritário. A linda capa é a reprodução de uma pintura de Guilherme Ginane de 2019, Pontos de fuga III, óleo sobre papel.

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