Constança Guimarães - Como se a gente conseguisse medir o tamanho do escuro

Poesia brasileira contemporânea
Constança Guimarães - Como se a gente conseguisse medir o tamanho do escuro - Editora Urutau - 122 Páginas - Capa e Diagramação de Victor Prado - Lançamento: 2020.

No livro de Constança Guimarães as memórias são pontos de partida para o fazer poético e, ao costurar ficção e realidade com muita sensibilidade, ela me faz lembrar da polonesa Wislawa Szymborska quando, por exemplo, dá vida aos objetos da casa: "a mesa redonda / que fica na varanda / do apartamento onde moro / pequena ela / tem uns três palmos de diâmetro / medi / nem tão pequena se pensar bem // é redonda a mesa e quase alta / pelo que entendo de altura de mesa / que é quase nada / ela alcança / o meio da minha coxa / se estou de pé // a mesa tem três pernas e é velha / não vale discussão // ela é velha [...]"

Ou ainda quando destaca as pequenas epifanias do cotidiano que podem passar despercebidas para quem não é poeta: "comprei aquela saia marrom / era um dia nublado / saio da loja com a sacola na mão / tão feliz como se fôssemos à praia amanhã // faz muitos anos / no bar eu de saia nova beijei um cara / que me comeu de novo / na manhã seguinte ele foi embora enquanto eu pelada / enrolada no lençol coava um café para dois / que bebi sozinha [...]" Enfim, tudo aquilo que representa um antídoto contra boletos de aluguel, relatórios e planilhas.

Contudo, a poesia pode representar também um grito de alerta quando relata a violência, dor e separação, como em uma noite depois: "[...] coloco a roupa / na cama de solteiro / que o rapaz da mudança montou no quarto onde / sentada no chão não choro / bebo o que sobrou do vinho / aberto ontem // o vinho é caro / a dor está / nas omoplatas roxas" e, por que não, espaço para uma declaração de independência e liberdade: "não quero / o que não cabe na cama atravessada / em dúvida respiro / ocupo-a inteira / durmo de viés"

Deixo três exemplos da poesia inspiradora de Constança Guimarães para nos lembrar de que, asim como Leonard Cohen já nos ensinou, não importa o tamanho do escuro, sempre há uma rachadura para que a luz possa entrar.

spoiler de uma mulher com cabelos brancos tingidos 

tenho álbuns de retrato
de papel tenho vários anos 
nas fotos minha mãe meu pai 
minha filha também

no álbum que minha mãe fez
quando eu era bebê ela colou recortes 
do jornal quando o homem chegou à lua
e da criação da minissaia 

num álbum de viagem 
quando eu já era mãe 
colei todas as recordações 
tíquetes passagens mapas fotos 
desenhos de minha filha

depois adulta viajei com minha mãe 
fomos juntas ao fim do mundo 
temos um álbum contando a jornada

ocorre que a cada visita aos álbuns 
tenho várias idades 
também fora
das fotografias 

e assim as memórias são como são
registros 
pontos de partida


*

a médica me receitou
um remedinho 
ansiolítico assim ela
disse remedinho
numa dose bem baixinha

pra ficar mais barato
mandou
que doida
eu comprar a receita da dose
quatro 
vezes
maior
pra tomar um quarto
assim ela disse
apenas um 
pedacinho por noite

como se a gente conseguisse medir o tamanho do escuro

depois das dezenove
horas
ou antes
fiquei apavorada
peguei o potinho
como veio da farmácia
coloquei em cima da mesa de jantar
ao meio-dia

cortei todos
os compostos de quatro em pedaços
coloquei em um tapauere
grande
o maior que tinha em casa

colei sobre toda a tampa
uma fita crepe e marquei
bem no cantinho assim eu fiz
o número
exato
com caneta preta

todo dia eu tomo
um às dezenove horas
em ponto risco o passado
marco o novo número
com a caneta que tenho
à mão quem está por perto
sou só eu
passo horas contando
e recontando o que sobrou

no tapauere com medo de mim
de overdose
durmo às dez
com a luz do quarto acesa 
a vasilha de plástico trancada
a chave debaixo do travesseiro


adendo

comprei
na bahia um imã
de geladeira que eram três
vidrinhos
bem pequenos
tão lindinhos
fechados por uma rolha
minúscula a fitinha
do bonfim fazia o laço
sal grosso pimenta e
um dia o de arruda caiu
mas não quebrou
nem eu


Sobre a autora: Constança Guimarães é escritora mineira, jornalista e autora de Ombros caídos olhando pro Inferno (Urutau, 2017) e A sereia do contorno e outras histórias (Leme, 2017). Tem poemas e contos em revistas como a Gueto (especiais Utopia/Distopia e Crianças em Guerra), Torquato e outras.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Como se a gente conseguisse medir o tamanho do escuro

Comentários

Adriane Garcia disse…
Tô demorando minha fila de leituras mas ainda chego nesse!
Alexandre Kovacs disse…
Oi Adriane, você vai gostar com certeza. Depois me conta!

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