Constança Guimarães - Como se a gente conseguisse medir o tamanho do escuro
No livro de Constança Guimarães as memórias são pontos de partida para o fazer poético e, ao costurar ficção e realidade com muita sensibilidade, ela me faz lembrar da polonesa Wislawa Szymborska quando, por exemplo, dá vida aos objetos da casa: "a mesa redonda / que fica na varanda / do apartamento onde moro / pequena ela / tem uns três palmos de diâmetro / medi / nem tão pequena se pensar bem // é redonda a mesa e quase alta / pelo que entendo de altura de mesa / que é quase nada / ela alcança / o meio da minha coxa / se estou de pé // a mesa tem três pernas e é velha / não vale discussão // ela é velha [...]"
Ou ainda quando destaca as pequenas epifanias do cotidiano que podem passar despercebidas para quem não é poeta: "comprei aquela saia marrom / era um dia nublado / saio da loja com a sacola na mão / tão feliz como se fôssemos à praia amanhã // faz muitos anos / no bar eu de saia nova beijei um cara / que me comeu de novo / na manhã seguinte ele foi embora enquanto eu pelada / enrolada no lençol coava um café para dois / que bebi sozinha [...]" Enfim, tudo aquilo que representa um antídoto contra boletos de aluguel, relatórios e planilhas.
Contudo, a poesia pode representar também um grito de alerta quando relata a violência, dor e separação, como em uma noite depois: "[...] coloco a roupa / na cama de solteiro / que o rapaz da mudança montou no quarto onde / sentada no chão não choro / bebo o que sobrou do vinho / aberto ontem // o vinho é caro / a dor está / nas omoplatas roxas" e, por que não, espaço para uma declaração de independência e liberdade: "não quero / o que não cabe na cama atravessada / em dúvida respiro / ocupo-a inteira / durmo de viés"
Deixo três exemplos da poesia inspiradora de Constança Guimarães para nos lembrar de que, asim como Leonard Cohen já nos ensinou, não importa o tamanho do escuro, sempre há uma rachadura para que a luz possa entrar.
spoiler de uma mulher com cabelos brancos tingidos
tenho álbuns de retrato
de papel tenho vários anos
nas fotos minha mãe meu pai
minha filha também
de papel tenho vários anos
nas fotos minha mãe meu pai
minha filha também
quando eu era bebê ela colou recortes
do jornal quando o homem chegou à lua
e da criação da minissaia
quando eu já era mãe
colei todas as recordações
tíquetes passagens mapas fotos
desenhos de minha filha
fomos juntas ao fim do mundo
temos um álbum contando a jornada
tenho várias idades
também fora
das fotografias
registros
pontos de partida
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