Kátia Borges - A teoria da felicidade
Os nossos autores e autoras souberam construir uma sólida tradição na arte de escrever crônicas com uma habilidade inata de expressar opiniões sobre os mais variados temas, alguns bastante complexos, de forma leve e bem-humorada. Como já comentei por aqui, a crônica é um texto que, normalmente, por mais interessante que seja, já nasce predestinado a uma breve existência nos meios de comunicação impressos ou digitais, além da ameaça de se tornar precocemente datado, devido à velocidade do noticiário atual, principalmente no campo político, onde novas publicações mudam as expectativas e opiniões polarizadas do grande público em poucos dias ou até mesmo horas, infelizmente nem sempre com o devido embasamento.
A seleção de crônicas neste mais recente lançamento de Kátia Borges é voltada para temas mais pessoais a partir da experiência de vida da escritora, desde a sua infância e juventude. No entanto, apesar deste caráter memorialístico, ocorre uma identificação do leitor com base nas suas próprias lembranças. Por exemplo, quem já passou pela trajetória de conviver com e perder um animal de estimação, certamente vai se emocionar com algumas crônicas, assim como se surpreender com suas lembranças musicais em um largo espectro que pode variar de David Bowie a Caetano Veloso ou de Janis Joplin a Vinícius de Morais.
Não esperem encontrar aqui um manual de autoajuda para a felicidade, mas sim uma celebração da vida com tudo o que ela tem de doloroso e também prazeroso. Me ocorre uma citação atribuída a Montesquieu (1689-1755) que demonstra bem esse caráter ilusório da felicidade, muito aplicável à nossa época, marcada pelas redes sociais: "Se quiséssemos ser apenas felizes, isso não seria difícil. Mas como queremos ficar mais felizes do que os outros, é difícil, porque achamos os outros mais felizes do que realmente são." Deixo com vocês um exemplo do estilo da autora com a crônica abaixo que empresta o título ao livro.
A teoria da felicidade
(Kátia Borges)
Em 2017, os conselhos que Albert Einstein escreveu de próprio punho para oferecer como gorjeta a um camareiro do Hotel Imperial de Tóquio foram vendidos por mais de 1,5 milhão de dólares, durante um leilão em Jerusalém. “Uma vida calma e modesta traz mais felicidade que a busca de sucesso e a inquietação constante”, dizia um dos bilhetes escritos em alemão. “Querer é poder”, ensinava a segunda mensagem.
Sou afeita a aconselhar os outros, confesso; é quase um esporte. Basta um amigo abrir a boca e fazer uma queixa, que elaboro em segundos o plano perfeito. Soluções para espinhela caída, nome no Serasa e amores que não deram certo? Temos. Nem sempre funcionam a contento, isso é verdade. Conselho não se pede e é preciso treino para acertar o alvo. Também não se vende. Mas vejam o caso de Albert Einstein.
Os papéis timbrados do Hotel Imperial de Tóquio com a Teoria da Felicidade atravessaram quase um século e renderam uma fortuna aos netos daquele homem. Aconselhar os outros pede coragem e, nesse sentido, Einstein foi admirável ao apostar na síntese. Não que eu concorde. Afinal, é possível uma vida feliz sem desejos? E, tendo desejos, como manter a quietude? Talvez o problema esteja nos conceitos.
Se olharmos direito, há uma contradição nos bilhetes que guardam os conselhos de Einstein. Um deles estimula a acomodação, o outro exorta ao movimento. É como se ele tivesse dito ao camareiro lá em Tóquio: “Se desejar algo, lute. Se pode passar sem, mantenha-se quieto”. No fundo, bem lá no fundo, tudo é relatividade. Nesse ponto, meu pensamento inquieto conecta-se com Rainer Maria Rilke.
Em Cartas a um Jovem Poeta, ele orienta Franz Xaver Kappus, que vacila entre a carreira militar e a poesia, por não saber se os seus versos são realmente bons. É quase um teste, e tão valioso quanto a Teoria da Felicidade: “confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?”. Rilke se exime, desse modo generoso, a um só tempo, do peso da crítica e do conselho. Examine a si mesmo, eis a senha. O resto é silêncio.
Se os livros didáticos contam a história dos vencedores, desencontros costumam render bons romances. O que dizer dos encontros? Por mais descartáveis, rápidos ou dolorosos, deixam sempre algum legado. Mesmo quando aconselho, por vício quase, à moça desconhecida ao meu lado no banco, desesperada com um pagamento atrasado, que é sempre possível habilitar o aplicativo.
Conta-se que o físico mais famoso do mundo comemorava solitariamente a notícia de que ganhara o Nobel de Física, naquele dia distante de 1922, quando o camareiro bateu em sua porta para cumprir uma missão rotineira a pedido do hóspede. Sem moedas nos bolsos, improvisou os tais bilhetes como se fosse capaz de prever que algum dia seriam valiosos, talvez como parte dos festejos pelo reconhecimento de sua genialidade.
Ali nasceram instantaneamente os herdeiros milionários de Einstein, como que por milagre. De minha parte, conselheira compulsiva que sou, trago comigo uma orientação que me enriquece em mais de 1,5 milhão de dólares. Vem da infância, emerge viva na memória e é como um mantra ou uma prece. “Cabeça erguida, sempre”, dizia minha mãe, diante de qualquer derrota. Passo adiante agora. Eis, para vocês, à guisa de moedas. Essa é a minha teoria pessoal da felicidade.
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