Vanessa Vascouto - Terra dentro

Literatura brasileira contemporânea
Vanessa Vascouto - Terra dentro - Editora Reformatório - 96 Páginas - Capa de Eduardo Kerges
Design e editoração eletrônica: Negrito Produção Editorial - Lançamento: 2020.

O romance, ou novela, de Vanessa Vascouto, tem como cenário uma região rural, não situada no tempo e espaço, onde ocorre uma história de amor com desfecho trágico. Contudo, mais importante do que a sinopse da trama, é a experiência literária proposta pela autora, ou seja, a forma como a narrativa é conduzida em primeira pessoa e alternadamente entre três irmãos, assim como a construção de cada uma dessas vozes a partir de uma linguagem que demonstra ritmo e expressão próprias, utilizando para isso elementos da prosa, poesia e dramaturgia. 

Rita "não bate bem" devido a um trauma do passado, apesar de ser a mais sensível entre os irmãos. A sua narrativa é feita na forma de fragmentos ou delírios em contraponto a uma goteira constante na casa (tic, tic, tic) que representa a decadência e a passagem do tempo. Mirna "ri entre os lençóis", a irmã mais velha, é irreverente e sensual, tem uma personalidade pragmática e controladora. Já Mosquito, o caçula, tem a natureza violenta com uma raiva que "nem sabe de onde vem". A sua paixão por Rosa será a origem da tragédia da família.

"[...] Eu pequena, terra vermelha nos pés, num pedaço de chão que não era da gente. Eu pequena. Eu, meu pai, minha mãe, a Mirna e o Mosquito. Irmã mais velha, irmão mais novo. Eu pequena no meio. Num pedaço de terra que nunca foi da gente. [...] Começou com a minha mãe, que nunca foi minha nem mãe. / Porque eu era magrela, pequena e vermelha, mais cabocla que os outros, e ela da cachaça, bêbada de tudo, o cheiro de pinga e uma patada amarga de bafo doce: 'te achei no lixo, lombriga'. Nem tinha porque ela dizer assim. / Mirna, irmã mais velha mais gorda. Mosquito, irmão mais novo, 'um cachorro'. / 'Que tipo de gente merece vida assim', ela perguntava prum cigarro em cima da mesa da coziha, dentro da casa que ficava no terreno emprestado do dono da plantação, a casa que dava vista pras batatas e que tinha mais sete casas do lado, tudo colada uma na outra, tão junto que dava pra ouvir o Nito comer banana sem os dentes duas paredes pra lá. Só saliva e banana, dum lado pro outro na boca banguela do Nito quando tudo ficava quieto. [...]" - Trecho da narrativa de Rita (pp. 13-14)

A terra, ou a falta dela, representa mais do que um conceito de posse na vida de Mirna, Rita e Mosquito, personagens que herdaram uma espécie de insanidade, tão próxima ao amor, que os ajuda a sobreviver em um ambiente inóspito e sem oportunidades. Como diz a Mirna: "coisa de amor e morte não tem regra", a gente precisa de esperança nessa travessia porque "viver é negócio muito perigoso" já nos ensinava o mestre Guimarães Rosa em Grande sertão.

"Eu sou gorda, mas não sou duas, eu já disse praquele peste que não dá pra contar com a Rita, que ela não bate bem. E 'Dona Redonda' é a puta que pariu ele. Tem graça nenhuma ficar aqui igual a um burro de carg a pra cima e pra baixo de olho em fazer o que essa casa precisa de fazer, merda. Vem de vez em quando e quer mandar. Caseiro era pra ter mais direito que esse povo que constrói e abandona. É cachorro, é grama, é cano que pinga. Acha ruim que eu te chamo. Você vem, conserta. De quebra, me come. Tem que achar ruim não. Eu digo que você vale cada centavo dos cento e cinquenta e ainda chega na hora. Isso é um negócio que eu gosto.8h23 certinho, toda vez. Falei pra Rita que teu nome é 8e23 e ela riu. Milagre, porque ela ri pouco. Ainda bem que tem eu pra cuidar, fazer ela engordar um pouquinho. Come tão pouco que se não fosse eu, ela já tinha morrido. Gente magra fica sempre azeda. Fiz sagu outro dia e tive que comer sozinha que ela inventou que tinha areia. É doida – só que menos doida que a mãe, graças a Deus, que deuzulivre ficar ela que nem a mãe, eu não mereço duas vezes a mesma peia [...]" - Trecho da narrativa de Mirna (p. 23)

Ao limitar a sua fábula trágica em um espaço tão restrito e deixar que as vozes de seus personagens conduzam o leitor em primeira pessoa, Vanessa Vascouto acaba alcançando um caráter universal e verdadeiro nesta obra ao lidar com o bem e o mal presentes na natureza humana. Um belo trabalho de literatura que vale a pena conhecer.

"Deitado reto eu via debaixo pra cima um céu rachado de galho. Eu queria morar naquele chãozão de azul, eu e você, ver de lá de cima que mais da metade do ano o diacho do caquizeiro não passava de um pé de pássaro. Dava nem folha nem caqui até o verão. Caqui tem valor, Rosa, não é que nem batata que dá o ano inteiro e nunca perde nem folha nem nada nada, sempre viva, raiz maldita. Eu sempre odiei aqui. Eu sempre gostei de odiar aqui. Eu sou forte forte, eu sou o rei das batatas. Eu odeio tanto aqui que vou ficar aqui pra sempre. Tem gosto lutar contra essa terra vermelha que não sai, e a plantação, e o meu pai um bunda-mole, a minha mãe um demônio, e o Nito que podia morrer. Um dia eu ainda mato esse velho filho da puta. De tanto que a gente repete a mesma coisa vem e acontece, ou acontece do avesso, só de raiva." - Trecho  da narrativa de Mosquito (pp. 27-28)

Sobre a autoraVanessa Vascouto é autora do romance Água fria e Areia (Lamparina Luminosa, 2018), da peça teatral A maior distância entre dois pontos (Sesi-SP Editora, 2019) e do infantojuvenil A Árvore e a Nãna (finalista do Prêmio Barco a Vapor 2018).

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