Ana Paula Maia - Assim na terra como embaixo da terra
Editora Record - 144 Páginas - Lançamento: 2017 (2ª edição 2019).
Assim na terra como embaixo da terra é o sexto romance de Ana Paula Maia – vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2018 – que tem como cenário uma colônia penal isolada, em uma região rural não definida, onde não há possibilidade de fuga e os detentos são tratados e caçados como animais. A escritora e roteirista carioca, portanto, se mantém fiel ao estilo de seus livros anteriores, lidando com personagens submetidos a uma realidade violenta e cruel à margem da sociedade, inclusive no mais recente lançamento, Enterre seus mortos (Editora Companhia das Letras, 2018), que levou também o Prêmio São Paulo de Literatura em 2019.
Como a instituição está em processo de desativação, acabou sendo esquecida pelas autoridades, transformando-se, ao longo do tempo, em um campo de extermínio sob a administração do psicopata Melquíades. O fato, que a autora deixa claro na narrativa, é que não há diferença entre os detentos de alta periculosidade e os guardas que os mantêm presos, todos perderam qualquer referência de humanidade ao conviverem no mesmo espaço de confinamento. Esta situação-limite oferece uma excelente oportunidade para a autora explorar a ambiguidade na personalidade de alguns personagens como o cozinheiro Valdênio.
Como a instituição está em processo de desativação, acabou sendo esquecida pelas autoridades, transformando-se, ao longo do tempo, em um campo de extermínio sob a administração do psicopata Melquíades. O fato, que a autora deixa claro na narrativa, é que não há diferença entre os detentos de alta periculosidade e os guardas que os mantêm presos, todos perderam qualquer referência de humanidade ao conviverem no mesmo espaço de confinamento. Esta situação-limite oferece uma excelente oportunidade para a autora explorar a ambiguidade na personalidade de alguns personagens como o cozinheiro Valdênio.
"Valdênio é velho para um lugar como este. Tem sessenta e cinco anos. Passou a metade da vida encarcerado, atrás de grades de ferro ou em colônias penais como esta, fazendo todo tipo de trabalho. Já deveria estar solto, mas a justiça o mantém neste lugar. Agora, espera nunca encontrar a liberdade em vida, pois já não há quem espere por ele do lado de fora dos muros. O mundo, e ele também, mas não na mesma sintonia. Valdênio tornou-se mais velho, doente e não muito mais esperto. O mundo recrudesceu. Ser jogado para fora dos muros seria para ele entrar num outro confinamento de sobrevivência e resistência que já não pode mais replicar. Seus primeiros anos de detento foram difíceis; aos poucos entendeu como o sistema funciona. Apanhou dezenas de vezes, teve o crânio esmagado, o maxilar deslocado, braços e pernas quebrados; por fim, um dia ficou lesionado na perna quando foi jogado na laje de um pavilhão. Nem todas as vezes ele soube porque apanhou, muito menos da última, quando foi deixado para morrer, mas sobreviveu. Seu corpo, moído no infern, aguarda o fim dos seus dias. Já não questiona mais. Obedece. Cumpre as ordens. Baixa a cabeça e se retira. Apanha, às vezes com motivo, às vezes sem. Por onde passou derramaram seu sangue. Seu rastro pode ser seguido. Intriga ter sobrevivido durante tantos anos. Pouquíssimos chegam à terceira idade encarcerados." (p. 15)Melquíades e Taborda são os únicos guardas remanescentes na colônia e se tornaram assassinos, tão ou mais cruéis do que os detentos. Taborda trabalha há dez anos como agente penitenciário. Acostumou-se a obedecer ordens, mesmo que não concorde com elas. Depois de presenciar e participar de tantos atos violentos, não sobrou espaço para sentimentos na sua personalidade, brutalizado pelo tempo que permaneceu na colônia, ele apenas teme Melquíades e espera o tempo passar, como todos os outros presos.
"Taborda separa o couro do osso e deixa pele pendurada num galho de árvore, limpa a cabeça do javali, removendo todo o conteúdo. Ele é hábil nessa atividade, e o cheiro fétido ao seu redor faz com que apenas as moscas se aproximem dos resíduos ensanguentados. Com uma faquinha, ele raspa o excesso de carne colada ao osso. Seca o suor da testa com as costas da mão. Dá-se por satisfeito ao ver um monte de carne desfiada ao lado de sua perna. Levanta-se apanha o esqueleto e uma pá e segue até o formigueiro, localizado nos fundos do pavilhão central. Com agilidade, ele cava a terra de onde centenas de formigas saem e ali coloca o crânio do javali. Joga a terra por cima e afasta-se apressadamente, debatendo-se e pisando com força no chão. Dali a dois meses, as formigas terão feito a limpeza geral no crânio, devorando dia e noite as carnes que não foram removidas manualmente. Apanha o couro que havia pendurado no galho de uma árvore e o leva para ser curtido no sal grosso dentro de um quartinho abandonado que servia outrora de depósito de feno." (p. 23)O curto romance, com pouco mais de cem páginas, é de leitura muito rápida em um estilo de roteiro cinematográfico. Dos poucos detentos que ainda sobrevivem na colônia: Valdênio, Pablo e o índio Bronco GIl, todos têm a certeza de que não há esperança de saírem com vida da colônia, restando apenas a remota possibilidade da intervenção de alguma autoridade ou a arriscada fuga. Bronco Gil é um protagonista do tipo anti-herói que Ana Paula Maia já utilizou em outro romance: De Gados e Homens (Editora Record, 2013).
"Logo depois de amanhecer, o dia refletia uma brancura intransponível que fazia os limites entre céu e terra desaparecerem. As montanhas que contornam a região amanheceram cobertas pela geada. Horas depois, o sol apareceu, vigoroso. Os homens que ainda restam na Colônia dividem-se no trabalho do roçado e da cozinha desde muito cedo. O galinheiro e a pocilga já foram devidamente cuidados. Pablo puxa uma carroça cheia de sacos de lixo. Sente-se um jumento, uma besta de carga. Desde que os cavalos foram mortos, são eles que puxam as carroças. Atravessa uma parte da fazenda cujo solo é mais arenoso, provocando, assim, o afundamento das rodas. Isso dificulta seu labor de besta e, vez ou outra, precisa parar para se recompor. O lixão atrai abutres para o local, e o fato de incinerarem a imúndicie não os espanta. Pelo contrário, como um sinaleiro, a fumaça parece atraí-los ainda de mais longe. Observa o voejar das aves negras, cortando o céu com suas asas arqueadas, grasnando uma para a outra, numa comunicação que ecoa a quilômetros de distância. Não é raro uma ave ou outra prender-se na cerca eletrificada e morrer depois de se debater inutilmente. Em algumas partes da cerca é possível ver restos dos esqueletos das aves que foram capturadas. Às vezes, Taborda utiliza uma longa vara de madeira para removê-los." (p. 65)O sugestivo título faz referência à situação de morte em vida dos presos e também aos corpos enterrados na área da colônia penal, no passado uma fazenda que ficou conhecida como Calvário Negro, onde ocorriam assassinatos e tortura de escravos. Por sinal, a comparação entre escravos e penitenciários é uma referência clara na ficção da autora à realidade de hoje nos presídios em nosso país que mantêm uma população encarcerada de maioria negra.
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