Braulio Tavares - Mundo Fantasmo

Literatura brasileira contemporânea

Braulio Tavares - Mundo Fantasmo - Editora Bandeirola - 128 Páginas - Projeto gráfico, capa e diagramação: Thaís B. Ferraz - Ilustrações: Romero Cavalcanti - Lançamento: 2020.

O paraibano Braulio Tavares, escritor, poeta, compositor e tradutor, já é um nome conhecido no meio literário, tanto pelos artigos que publica regularmente no seu blog Mundo Fantasmo, quanto por ter se tornado uma referência na literatura fantástica e de ficção científica no Brasil. A antologia de contos Mundo Fantasmo foi publicada originalmente em 1996 pela Editora Rocco (Rio de Janeiro) e depois lançado em Portugal em 1997 pela Editorial Caminho (Lisboa). Esta é, portanto, a terceira edição desta obra, o que comprova a atualidade e originalidade dos sete contos, difíceis de se enquadrar em uma única categoria.

Uma homenagem à literatura, a começar pelo título, fala de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, durante a batalha final contra Hermógenes, assim como outras citações a escritores e obras consagradas ao longo de cada conto, o que confirma que Braulio Tavares é, antes de mais nada, um leitor apaixonado e voraz, como bem sabem os seguidores de seu blog.

No texto de abertura, Oh Lord, won’t you buy me, esqueça o tradicional pacto com o diabo, ideia tantas vezes explorada na literatura, aqui o argumento é um inusitado pacto com Deus em uma narrativa que traz uma sequência de referências a livros inexistentes de grandes autores em um exercício típico de metaficção, inspirado em Jorge Luis Borges. Neste conto, escrito em um tom bem-humorado, marca do estilo de Braulio Tavares, o protagonista irá se surpreender com uma inesperada aparição de Deus em um vagão do metrô em São Paulo na forma de um homem jovem vestindo jeans e uma camiseta de malha preta com a imagem de John Lennon e a frase The dream is (starting) over. A partir deste ponto tudo pode acontecer e uma coisa é certa: não conseguimos mais interromper a leitura.

"Tomei a sacola de sua mão. Estava cheia de livros. Senti aquela mistura peculiar de euforia e expectativa que faz meu coração bater mais forte toda vez que chego em casa e abro o pacote de livros que acabei de comprar. Segurei a sacola com uma mão, e com a outra retirei o primeiro livro. Era um livro não muito grosso, de capa reluzente: Dancing in the Fire, de Ernest Hemingway. Peguei outro; era um pocket-book, também em inglês: The Empty Table, de Dashiell Hammett. O terceiro era em português, e enorme: Grande Sertão: Cidades. O autor: João Guimarães Rosa. A esta altura eu já estava respirando depressa, e meu coração parecia que ia saltar do peito. Ajoelhei-me no chão e fui empilhando os livros uns sobre os outros, à medida que os retirava. Surgiu outro pocket... Not just a Burning Hologram, de Philip K. Dick. Um volume capa dura, amarelado pelo tempo... Poèmes d'Afrique, de Arthur Rimbaud; uma edição da Mercure de France, 1904... Mais dois livros de bolso: And Then the Stars Went Mad, de Henry Kuttner; e El Misterio Del Escudo Sajón y Otros Relatos, de Jorge Luis Borges." - Trecho do conto Oh Lord, won’t you buy me

Em Exame da obra de Giuseppe Sanz, encontramos um autor que escreve os seus livros unicamente a partir da cópia de fragmentos extraídos de outras obras, publicando-os com diferentes pseudônimos, novamente a metaficção comanda o texto, tornando o ofício do escritor, assim como a paixão pela leitura, pontos centrais da narrativa. O protagonista justifica a sua prática de plágio com absoluta racionalidade: "Furtar é um pecado, dialogar com os mestres é um dever de humildade", continuando a sua argumentação com os seguintes exemplos: "Veja como Joyce enriqueceu Homero, como Alfred Bester equiparou-se a Dumas, Lobato iluminou Cervantes."

"Sanz era aquela avis rara na cultura brasileira: um escritor profissional. Vivera cerca de trinta anos entre o Rio e São Paulo, onde trabalhara como revisor, tradutor, copidesque, redator publicitário e autor de seriados radiofônicos. Viera morar em Belo Horizonte após o golpe de 64. Em política era vagamente de esquerda, mas dizia: 'A vantagem das ditaduras é que as ruas ficam mais tranquilas à noite.' Este era o menor dos paradoxos que ele emitia sem cessar. Fiquei sabendo depois que escolhera Minas porque ali podia morar de graça, num apartamento da família de uma ex-esposa. Surpreendeu-me descobrir que escrevia livros, e mais que isto, que os publicava. Para mim, leitor de Kafka e de Fernando Pessoa, as duas atividades tinham muito pouco a ver uma com a outra. Mas Sanz me tranquilizou: na verdade não escrevia livros, disse ele: copiava-os e passava-os adiante sob pseudônimo, de modo que ninguém podia acusá-lo de vaidade." - Trecho do conto Exame da obra de Giuseppe Sanz

Já em E assim destruímos o Reino do Mal, uma série de erros cronológicos propositais ajudam a criar uma atmosfera nonsense neste épico do absurdo que descreve a obsessão da luta contra o Mal. No posfácio, o próprio autor explica detalhes sobre o processo de criação dos contos: "Não tendo certeza total de como um texto ia ser lido, tentei produzir uma história de fantasia num tom épico, não somente no sentido de narrar batalhas e aventuras, mas o distanciamento de quem narra as coisas mais espantosas sem se espantar com elas. Um contista que eu lia bastante na época era Donald Barthelme, que usa com frequência esse tom 'deadpan' ao contar coisas absurdas."

"Nossas tropas cercaram o Reino do Mal numa clara manhã de domingo do Ano 315 da Guerra Santa. Detivemo-nos por algum tempo no alto de um platô de onde podíamos descortinar a silhueta negra do Mal a mover-se sobre as pastagens, na planície. O Mal, como todos sabem, é uma criatura cambiante, que se esquiva aos nossos conceitos e aos nossos sentidos. Do nosso ponto de vista, naquela manhã, ele tinha a aparência de um acampamento de soldados tártaros. Podíamos ver as colunas de fumaça sendo arrastadas pelo vento, enquanto eles cozinhavam suas refeições blasfemas; podíamos ver também o reflexo do sol nas suas baionetas e nos para-brisas dos seus carros. Fiz com que instalassem meu telescópio de campanha e chamei meu ajudante de guarda, Baltazul." - Trecho do conto E assim destruímos o Reino do Mal

Sobre o autor: Bráulio Tavares (Campina Grande, 1950) é um escritor, compositor, letrista, poeta, dramaturgo e pesquisador de literatura fantástica. Organizou títulos de importância fundamental na literatura de gênero, além de escrever o pequeno clássico O que é Ficção Científica (Brasiliense, 1986). Escritor premiado nacional e internacionalmente, tem agora dois de seus livros mais marcantes relançados pela Editora Bandeirola: A Espinha Dorsal da Memória e Mundo Fantasmo.

Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Mundo Fantasmo de Braulio Tavares

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