Edson Valente - A mãe escondida

Literatura brasileira contemporânea

Edson Valente - A mãe escondida - Editora Patuá - 176 Páginas - Prefácio de Cinthia Kriemler - Capa, projeto gráfico e diagramação: Rodrigo Sommer - Lançamento: 2020

Prosa e poesia se complementam na estratégia narrativa do romance de estreia de Edson Valente para contar a sofrida convivência do protagonista – desde a lembrança mais remota da infância até a idade adulta – com a morte anunciada da mãe que sofreu por toda a vida de uma cruel doença degenerativa. A dor da ausência permeia todo o passado deste protagonista nomeado apenas como menino-homem ou homem-menino, uma dor que é amplificada pelo sentimento de culpa que ele não consegue controlar.

Na primeira parte do romance, Expiação, a voz narrativa se concentra na primeira pessoa na forma de poemas que são, na verdade, desesperados pedidos de perdão, primeiramente em nome do menino-homem do passado que nunca conseguiu demonstrar o seu amor ("Eu amo a senhora / Eu não conseguia dizer / Talvez não tivesse o devido respeito / Ou ninguém me ensinou direito / A amar não se aprende sozinho") ou uma forma de expiação de um doloroso sentimento de culpa do homem-menino ("Mãe, / Me execra / Devia ter me cuspido / Enquanto era tempo / Me feito excremento / Lixo contaminado").

Mãe, 
Pede perdão. 
Por me ter concebido 
Teu feto abjeto 
Ter aceitado o esperma 
Não ter abortado

Mãe, 
Me execra. 
Devia ter me cuspido
Enquanto era tempo 
Me feito excremento 
Lixo contaminado 

Mãe, 
Te peço perdão. 
E como tenho te procurado 
Entre tudo o que toco 
E sujo

Na segunda parte, Esconderijos, a condução da narrativa migra da primeira para a terceira pessoa, assumindo uma forma livre de prosa enquanto alterna passado e presente. O brilhante prefácio de Cinthia Kriemler resume muito bem: "Por meio de uma escrita reflexiva, criativa, muitas vezes metafórica, e propositadamente vertida através do uso de expressões de densidade dramática, o autor nos apresenta a trajetória, da infância à vida adulta, de um filho que viu morrer de forma lenta e dolorosa o único afeto a quem entregou seus sentimentos de maneira irrestrita, plena. Um filho em luto inextinguível. Luto cujas fases estão todas representadas na narrativa: negação, raiva, barganha, depressão. Todas, à exceção de uma: a aceitação. [...]"

     Tentava conhecer a si mesmo, sem o inevitável aplauso dela, em eventuais isolamentos, não definitivos, não exatamente clandestinos, pois a intenção era ser encontrado em algum momento, como nos jogos de pique-esconde, mas sem o deliberado propósito de jogar; uma metáfora preparatória, como no fingimento lúdico do tutor que enxerga o vulto mas se dirige ao lado oposto para aumentar o impacto da surpresa posterior na confluência. Nas brincadeiras infantis, davam a essa dinâmica o nome de “café-com-leite”, a criança que pratica porém não o faz para valer, e sim apenas como treino. 
     A caverna do escapismo falseado era construída com almofadas quadradas revestidas de um tecido marrom, de textura semelhante à do veludo. Ou das cavidades do intestino.
     Seis dessas almofadas formavam as paredes da estrutura, duas em cada lateral e uma em cada extremidade do retângulo. Outro par delas fechava o casulo por cima.
     Era ali que o menino se deitava para o nada, ou para uma cegueira quase tumular, um exercício de claustrofobia, mas não a ele de todo entregue, uma claustrofobia café-com-leite, embora fosse esse o fértil terreno do cultivo de seus primeiros embates sérios com a finitude.
     Mesmo trancafiado entre paredes de veludo, ouvia a voz dela. 
    Naquela condição, porém, não lhe era dirigida; era a voz dela no vazio do mundo, no além da placenta, um vagar de descolamentos mais ou menos imperceptíveis, mas que incubavam as consequências de um atropelamento; punções que só dariam alarme quando o corpo esfriasse.
     Essa voz dela, solta, causava um estranhamento, como o morto que grita e o som não lhe sai, pois não há cordas vocais ou aparatos visíveis, e não se pode fugir nem pelos atalhos da morte, já se está putrefato, resta apenas contemplar a existência do outro, que nunca o vê, e esse o mais tenebroso limbo. 

     Temia o nada.

     O antes do útero.

     Ou o depois.

Na terceira e última parte, Exumação, volta a voz narrativa em primeira pessoa e fica a memória de uma brincadeira de "pique-esconde": "Então os objetos comuns, percepções, sentimentos hábitos, pequenas bobagens que escapam, o resto de um dia, um livro guardado, poeira embaixo da cama, manias, lembranças, o espaço em círculos, os olhares da vizinhança, expressões sérias e uma gargalhada incontida." Um livro que lida com a emoção sem mascarar a verdade e que, por isso, provoca a identificação, principalmente no leitor que já passou por uma experiência de perda. Isso me faz pensar que dor e culpa são sentimentos comuns a muitos de nós, infelizmente.

Sobre o autor: Autor dos livros Lençóis em leitos coletivos (Poesia - Patuá, 2018), Raiz forte (Contos - Patuá, 2015) e Pow-emas e Outros Jabs Líricos (Poemas - Pátua, 2014), Edson Valente é jornalista e também autor do livro de contos Refluxos (Ateliê Editorial, 2010). Cinéfilo admirador de Aleksandr Sokurov e Wong Kar-wai, corinthiano, não vive sem canções desesperadas de bandas como Dirty Three, Low, Tindersticks, Red House Painters, Antony and The Johnsons e The Jesus and Mary Chain. Nunca assistiu a uma luta de boxe, mas suporta ver sangue.

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