Ádlei Carvalho - Céu de Luz Marina

Literatura brasileira contemporânea
Ádlei Carvalho - Céu de Luz Marina - Editora Patuá - 180 Páginas - Capa e projeto gráfico: Carla Heloisa - Lançamento: 2023.

O romance de Ádlei Carvalho tem como pano de fundo a antiga fábrica de tecidos situada na Vila do Biribiri, nos arredores de Diamantina em Minas Gerais, que funcionou entre 1877 e 1973, utilizando, em sua maior parte, mão de obra feminina proveniente de um orfanato em Diamantina, portanto moças muito pobres, ingênuas e sem experiência. Por ser uma região isolada e distante dos centros urbanos, foi necessária a construção de uma vila composta, além dos galpões da fábrica, por um dormitório (chamado de convento), uma capela, 33 casas e um armazém que mantinha uma relação de dependência e controle com os operários(as).

O livro narra a comovente história de amor e resistência entre duas mulheres, ao longo da infância e adolescência, que precisaram vencer os abusos e o preconceito neste microcosmo que representava a sociedade patriarcal na época da Segunda Grande Guerra. Toda a narrativa é conduzida pela já nonagenária Luz Marina em sucessivas gravações feitas por sua neta Patrícia, como parte de um projeto para resgatar e preservar as memórias da avó. Aos poucos, se revela a relação do passado entre duas meninas, Luz Marina e Celestiana, ou simplesmente Luz e Céu como se chamavam, segredo que ficou escondido de toda a família por muitos anos.

"Aquele dia mudou a minha vida, Patrícia. Chegando lá, tirei o uniforme e me joguei na água. Eu não tinha maiô, mas usava anágua, o sutiã enorme e a calcinha, que mais parecia uma bermuda. Louca a sua avó, né? Mas eu queria mesmo ser louca naquele dia. No fundo, acho que só desejava ser mais dona de mim, agir como pedia o meu espírito, enfrentar os meus medos. / Tudo estava muito tranquilo: o barulho da água correndo por entre as pedras, os passarinhos cantando pelos arredores, o zunido do vento morno, o toque macio do sol sobre a minha pele. Seria um momento de total relaxamento, uma tarde todinha minha com a Natureza, até que eu tive a ideia de entrar debaixo daquela ducha. O paredão parecia uma escada e eu fui subindo devagarinho, tomando todo o cuidado possível e do nada, pá! Acabei escorregando e caí de costas no poço. Aconteceu assim, num piscar de olhos. Eu sabia nadar, mas o problema é que eu bati na água feito uma tábua e afundei. Não sei contar muito bem o que aconteceu. Lembro que fiquei atordoada, sem conseguir me mover, achei que ia morrer. Eu via tudo de baixo para cima, o clarão lá fora, o céu embaçado, depois fui apagando aos poucos, como num sono, até que senti alguma coisa me puxar pelo cabelo, me agarrar por debaixo dos braços e me levar até a margem. Quando abri os olhos, me deparei com aquele rosto preto tão perto do meu que eu podia sentir a sua respiração ofegante. [...]" (p. 48)

Luz Marina, que perdeu a mãe muito nova, vai morar na Vila do Biribiri na casa da sua tia Socorro em 1943, depois que o pai é convocado para lutar na Itália. Socorro é uma mulher de uma beleza deslumbrante, mas precisa lidar com um marido extremamente violento, Geraldo, gerente da fábrica de tecidos. Ao mesmo tempo que Luz Marina conhece a natureza exuberante da região e faz amizade com Celestiana, uma menina negra ignorada pela comunidade, que não tinha o direito de estudar com as outras crianças, ela precisará de muita coragem para escapar dos assédios do tio Geraldo e ajudar as operárias, até o aguardado retorno do pai. 

"Acontece que, numa daquelas noites, Patrícia, a Céu e eu passamos pela portinhola para pular sobre os fardos de algodão, quando ouvimos algo estranho, assustador. Ficamos com medo, mas decidimos investigar. Nos arrastamos pela passarela escura lá no alto, no maior silêncio, e aquele som prosseguia, ia ficando cada vez mais intenso e triste. Tinha uma mulher sofrendo ali. / Quando alcancei certo ponto, que assombro: lá estava o Geraldo violentando uma das operárias da fábrica. A moça completamente indefesa, abalada, ultrajada... não conseguia identificá-la, mas via as lágrimas que escorriam dos seus olhos, refletindo a luz amarelada do depósito; os punhos cerrados como quem ainda quisesse se defender, ou já tivesse tentado isso sem sucesso, enquanto ele seguia com violência, bruto, sádico, segurando os braços dela e zurrrando feito um jumento, com a calça ao meio das pernas. Depois a virou de bruços e prosseguiu, agarrando a pobrezinha pela nuca, esfregando o seu rosto contra a mesa. Pode calcular o horror que aquilo me causou? Eu praticamente não entendia nada de sexo e a minha primeira aula foi aos treze anos, testemunhando um estupro." (pp. 73-4)

Ao nos contar essa linda e improvável união do Céu com o Mar, o autor alterna a história de Luz Marina no passado com algumas situações vivenciadas pela neta Patrícia na atualidade da cidade de São Paulo. Esta comparação mostra que, apesar dos avanços nesta área, muita coisa ainda precisa ser feita para garantir os direitos da mulher na nossa sociedade. Destaque para o dedicado trabalho de pesquisa histórica de Ádlei Carvalho, assim como a condução das convincentes e fortes vozes femininas que ele criou em seu romance. Uma leitura emocionante que deixa os olhos embaçados em alguns momentos, sendo difícil de interromper até o final.

"Durante um mês e meio, papai e eu trocamos telegramas. Estava tudo certinho, caminhando conforme eu sonhava, tirando, claro, a situação da tia, que eu resolveria depois. Não só dela, mas também das operárias daquela fábrica. Tudo o que vivi em Biribiri até ali foi moldando o meu olhar sobre as coisas, Patrícia, ajustando a minha lente à realidade. Na ocasião do torneio de inverno daquele ano eu observava aquelas mulheres todas sorrindo, vibrando e cantando em êxtase, enquanto se expunham ao olhar lascivo do Geraldo. No dia adia, passavem por mim com um ar sombrio, sorrisos acanhados, e era inevitável que eu me perguntasse qual delas seria a nova 'escolhida'. Quem dentre elas o covarde teria mandado o Gumercindo vigiar, poupar, guardar para ele como fez com a Eurídice? Isso me doía na alma, atormentava meu pensamento, afetava o meu humor. Então fiz uma promessa a mim mesma: não deixaria que nenhuma delas se tornasse a próxima vítima. Meu projeto incluía denunciar aquele monstro assim que estivéssemos em Belo Horizonte, e meu pai me ajudaria nisso, eu tinha certeza." (pp. 121-2)

Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: Ádlei Carvalho é mineiro, de Belo Horizonte, autor das seguintes obras: A travessia (romance, 2008); Todas as palavras de amor (poesia, 2008); Triângulo vermelho (romance, 2011); Canção para despertar os pássaros & novos planos de voo (poesia, 2012); Uma estrela nos olhos do menino (romance infantojuvenil, 2018); As nove páginas de Alberto Silva (romance, 2019).

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