Gabriel García Márquez - Em agosto nos vemos

Literatura hispano-americana
Gabriel García Márquez - Em agosto nos vemos - Editora Record - 132 Páginas - Tradução: Eric Nepomuceno - Ilustração da capa: David de las Heras - Lançamento: 2024.

Em um dos eventos editoriais mais aguardados do ano, foi lançado simultaneamente em 41 idiomas e 70 países o romance póstumo de Gabriel García Márquez, "Em agosto nos vemos". Segundo o prefácio assinado pelos filhos do autor, Rodrigo e Gonzalo García Barcha, o livro havia sido descartado por Gabo mas, ainda assim, dez anos após a sua morte, os irmãos decidiram solicitar a Cristóbal Pera, editor espanhol, que revisasse os originais e prosseguisse com a publicação. A decisão dos descendentes do Prêmio Nobel de Literatura colombiano e criador do "realismo mágico" que, para o bem e para o mal, passou a significar um sinônimo de literatura latino-americana, reacende a polêmica sobre o direito dos herdeiros publicarem obras não autorizadas pelos autores em vida.

O romance pode ser considerado como o fechamento de uma trilogia sobre o amor na idade madura, iniciada com “Do amor e outros demônios” (1994) e “Memória de minhas putas tristes” (2004), tendo sido revisado pelo próprio Gabo que, apesar da sua decisão de não publicá-lo, indicou o seu “Grande Ok” após a quinta versão, como comprova o fac-símile, incluído nesta edição. Ana Magdalena Bach, é uma mãe de família, com 46 anos no início da narrativa, que viaja todo mês a uma ilha caribenha no dia 16 de agosto, para visitar o túmulo da mãe. Certa noite, ela decide dormir com um desconhecido que encontra no bar do hotel em que está hospedada. A partir de então, sua vida muda e a cada mês de agosto, ela escolhe um amante diferente, esquecendo do marido e dos dois filhos.

"Ela comeu depressa, tentando superar a humilhação de fazer uma refeição sozinha, mas sentiu-se bem com a música, que era suave e tranquilizante, e a menina sabia cantar. Quando terminou, só restavam três casais em mesas dispersas, e, bem na frente dela, um homem distinto que não tinha visto entrar. Usava linho branco, os cabelos metálicos. Tinha na mesa uma garrafa de brandy, uma taça pela metade e parecia estar sozinho no mundo. / O piano iniciou um Clair de lune, de Debussy, num aventureiro arranjo para bolero, e a menina cantou com amor. Comovida, Ana Magdalena Bach pediu um gim com gelo e soda, o único álcool que aguentava bem. O mundo mudou depois do primeiro gole. Ela se sentiu atrevida, alegre, capaz de tudo e embelezada pela mistura sagrada da música com o gim. Achou que o homem da mesa da frente não a tinha visto, mas o surpreendeu observando-a quando o fitou pela segunda vez. Ele enrubesceu. Ela sustentou o olhar enquanto ele verificava o relógio de bolso. Meio sem jeito, ele guardou o relógio, serviu-se de outra dose, de olho na porta e acanhado porque já sabia que ela o observava sem misericórdia. Então a encarou. Ela sorriu, e ele a saudou com uma leve inclinação de cabeça." (pp. 19-20)

A atitude libertária da protagonista, batizada com o sugestivo nome de Ana Magdalena, mesmo sofrendo algumas decepções nos anos subsequentes à sua primeira aventura amorosa (quando é confundida com uma prostituta), não é usual na obra de Gabriel García Márquez que normalmente apresenta uma visão mais patriarcal decorrente do universo latino-americano no qual foi criado. Apesar do amor que Ana ainda sente pelo marido, após muitos anos de um casamento supostamente feliz, ela sente que o tempo está passando e não consegue resistir ao desejo expresso pelo "bater de asas de borboletas" que sente em seu peito a cada vez que se aproxima um novo mês de agosto. 

"Seu horário habitual a despertou às seis. Ficou um instante divagando com os olhos fechados, sem se atrever a admitir o latejar de dor nas têmporas, nem a fria náusea, nem o desassossego por algo desconhecido que sem dúvida esperava por ela na vida real. Pelo ruído do ventilador, percebeu que a alcova já era visível na alvorada azul da lagoa. De repente, como o raio da morte, foi fulminada pela consciência brutal de que havia fornicado e dormido pela primeira vez na vida com um homem que não era o seu. Assustada, voltou-se para olhá-lo por cima do ombro, mas ele não estava. Tampouco estava no banheiro. Acendeu as luzes e viu que a roupa dele não estava ali. Já a dela, que tinha sido jogada no chão, agora estava dobrada e posta quase com amor na cadeira. Só então se deu conta de que não sabia nada dele, nem mesmo o nome, e a única coisa que restava de sua noite louca era um triste cheiro de lavanda no ar purificado pela borrasca. Só quando apanhou o livro na mesinha de cabeceira para guardar na maleta foi que percebeu que ele havia deixado entre suas páginas de terror uma nota de vinte dólares." (pp. 28-29)

Obviamente a obra não pode ser avaliada com o mesmo rigor e critério de outros romances de Gabriel García Márquez, hoje considerados como clássicos da literatura universal, tais como "Cem anos de solidão" ou "O amor nos tempos de cólera" e nem poderia ser diferente, uma vez que, citando novamente o prefácio dos filhos de Gabo: "O processo foi uma batalha entre o perfeccionismo do artista e o declínio de suas faculdades mentais". Contudo, antes de ceder à tentação de criticar o livro, devemos considerá-lo pelo que ele realmente é, uma justa homenagem a um dos grandes escritores do nosso tempo, reconhecendo que os leitores certamente se emocionarão ao identificar alguns traços do seu brilhantismo que tanto nos encantou ao longo dos anos.

"A inquietude dele assustou a mulher e consolidou o que parecia ser uma nova atitude dos homens com relação a ela. Sempre fora assediada, mas era tão indiferente a eles que os esquecia sem pena. Em compensação, naquele ano, ao voltar da ilha, teve a impressão de que trazia na testa um estigma que os homens viam e que não podia passar despercebido para alguém que a amava tanto e a quem ela amava mais do que ninguém. [...] Com as primeiras ondas de calor de julho, começou dentro de seu peito um bater de asas de borboletas que não daria trégua até que voltasse para a ilha. Foi um mês longo, e alongado ainda mais pela incerteza. Sempre tinha sido uma viagem tão simples como um domingo de praia, mas a daquele ano foi presidida pelo pânico de se encontrar com o amante fugaz dos vinte dólares que já havia repudiado em seu coração. em vez da calça jeans e da maleta de praia dos anos passados, vestiu um conjunto de linho cru e sandálias douradas e fez a mala com roupa formal, sandálias de salto alto e um enfeite de falsas esmeraldas. Sentiu-se outra: nova e capaz." (pp. 43-46)

Literatura hispano-americana
Sobre o autorGabriel García Márquez nasceu em 6 de março de 1927, em Arataca, um pequeno povoado na costa atlântica colombiana. Honrado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, publicou seu primeiro conto, "A terceira renúncia", aos vinte anos e, no ano seguinte, deu os primeiros passos no jornalismo. Durante mais de meio século exerceu esses dois ofícios, enfeitiçado pelo "encanto amargo da máquina de escrever". Seu talento na arte da narrativa fez com que ele fosse considerado um escritor fascinante por milhares de leitores. Considerado o maior expoente do realismo mágico, sempre afirmou que: "Não há nos meus romances uma única linha que não seja baseada na realidade." Ele foi, definitivamente, o criador de um dos universos mais ricos de significados em língua espanhola no século XX. Morreu na cidade do México em 17 de abril de 2014.

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