Maria Fernanda Elias Maglio - Você me espera para morrer?
Maria Fernanda Elias Maglio faz a sua aguardada estreia na categoria romance depois das premiadas coletâneas de contos: Enfim, imperatriz (Prêmio Jabuti 2018) e Quem tá vivo levanta a mão (finalista dos prêmios Candango e Oceanos 2022). Em Você me espera para morrer?, a autora nos surpreende com a sua criatividade no tratamento da forma e conteúdo da narrativa, mantendo um controle absoluto da linguagem que confere autenticidade à construção das personagens, neste caso as irmãs gêmeas Ilana e Aline, principalmente no período da infância, um dos exercícios mais difíceis na literatura e que foi explorado com muita sensibilidade no romance.
A narrativa é conduzida alternadamente entre a primeira pessoa, na voz de Ilana em forma de carta para a irmã, e um narrador onisciente em terceira pessoa que descreve a trajetória das personagens desde a infância até a idade adulta. Na verdade, o leitor acompanha mais objetivamente o protagonismo de Ilana, uma vez que Aline partiu para morar no exterior aos dezoito anos e nunca mais voltou, o que faz com que grande parte da história seja contada com base na ausência, ou seja, por suposições de Ilana e alusões implícitas ao longo do romance, contudo Ilana não esqueceu a promessa feita quando eram ainda meninas: uma deveria esperar a outra para morrer.
"Ilana arranca um chumaço de grama, coloca na panelinha vermelha, despeja um pouco da água que está no pote de margarina, mexe com um graveto: tá pronto o papá, nenê, agora come. Fala com a boneca de olhos vidrados de azul, o rosto rabiscado de caneta, um tufo de cabelo amarelo, quase branco, saindo do alto da cabeça. A boneca não tem roupa nenhuma, ainda assim não está pelada, porque não tem o que faz menina estar pelada. Ilana abre as perninhas de plástico e olha: nenhum risco, norenhuma coisa escondida. Desce os shorts e a calcinha até a altura dos joelhos, abre as pernas que não são de plástico e olha: o risco e as coisas escondidas. Encosta o indicador em algo que lembra um botão, o corpo se retrai, em seguida ela ri, sem barulho. Toca de novo e dessa vez nem se contrai, só o riso que ninguém ouve. Escuta a voz da mãe na cozinha, sobe os shorts e calcinha, a boneca ainda de pernas escancaradas, sem nada para mostrar, a comidinha de grama ao lado, nenê danada, nem comeu o papá. Leva o indicador no nariz e sente o cheiro do lugar que a mãe chama de lá. A mãe diz, lava direitinho lá, tem que lavar bem lá pra não cheirar. E sempre cheira, não importa o quanto sabonete esfregue (e é bom esfregar lá), sempre um cheiro de uma coisa que ela não sabe. A irmã tem o mesmo lá e ela queria perguntar, Line, quando você passa sabonete lá, fica com cheiro de sabonete?" (pp. 11-12)
À medida em que o leitor avança no texto, percebe que há algo muito errado na relação do pai com as meninas, um homem dominador e voyeur que não chama a mulher e as filhas pelos seus nomes "em uma objetificação extrema não só dos corpos, mas da própria existência feminina", como bem destacado na apresentação de Micheliny Verunschk. De fato, em toda a narrativa fica claro um ato recorrente de violência doméstica que imaginamos ter provocado a partida de Aline e influenciado na formação de Ilana e suas sucessivas perdas ao longo da vida, sendo a mais trágica a da própria filha, Maria. Enfim, um livro potente que reflete uma história de vida dolorosa.
"Não é pra você que eu escrevo, nem sei onde você está. Você está me esperando, Line? Por mim pode ser agora, neste minuto, você aí nessa terra de gelo e eu aqui, sentada na mesa da cozinha do sítio. Um forno, a casa inteira é quente, as paredes, o chão, o sofá vermelho de quando a gente era pequena ainda tá aqui, tem cheiro de flor e poeira, sei lá por que, a poeira sim, mas flor, Line, por que diabo o o sofá tem cheiro de flor? Um dia arrebento na faca e descubro se tem flor no lugar de espuma, só pode ser. / Se tivesse endereço, eu mandava carta, ligava, você deve ter celular, essas coisas, se é que ainda continua viva e eu acho que não. Ninguém some assim, vai embora pra nunca voltar, só em filme, essas coisas de mentira, na vida de verdade, ou a pessoa volta, ou morre. Quando o pai foi embora, eu sabia que eram duas opções: ou ele voltava, ou morria, e eu torci tanto pela segunda, Line, fiz até promessa pra Santa Rita. eu tinha oito anos, mas é como se eu soubesse de tudo que nem tinha acontecido. Se ele tivesse morrido, você não tinha ido embora e de repente a Maria estava aqui no sítio comigo, arrancando mato da horta. Minha filha, Line, minha filha. Agora a horta só tem mato e eu nem ligo, um capim escuro que engoliu cenoura, alface, tudo." (pp. 19-20)
Assim como todos os livros anteriores de Maria Fernanda Elias Maglio, este também é bastante recomendado, uma verdadeira aula de literatura como podemos costatar nos trechos em destaque, sobretudo na passagem abaixo, despedida das irmãs narrada em terceira pessoa, mas contendo diálogos implícitos e definições da personalidade de ambas as personagens, desde a dificuldade de comunicação e troca de afeto entre elas, tão be pontuada pela tradicional resposta lacônica, "ã-hã", de Ilana, até a insinuação de assédio: "vai me deixar sozinha com ele?". Imperdível e certamente um dos melhores livros lidos no ano até o momento.
"Aline segura os cabelos no alto da cabeça em frente ao espelho, experimentando um coque, solta de novo e desembaraça os fios com os dedos. Tira do bolso um batom e passa, enquanto fala com a irmã. Aline deixa para dizer qualquer coisa difícil quando está com a boca ocupada: batom, escova de dentes, comida. Vou sentir sua falta, Lana. E o batom na boca não deixa ela ela dizer claramente, mas Ilana escuta claramente e por isso não consegue responder, só ã-hã. E se tivesse coragem, diria, eu também vou sentir sua falta, por que diabo você tá indo embora?, agora que a mãe morreu, vai me deixar sozinha com ele?, o que ele fez com você, Line?, um dia vou te encontrar onde você estiver, vou pra bem longe do forno dessa cidade de merda. [...] Aline segura o braço da irmã e sem nada na boca, nem pão nem batom nem pasta de dentes, diz: você me espera para morrer? Ilana ri, sabe que não é uma piada, ainda assim a risada nervosa escapa. Queria perguntar para a irmã se ela demora a voltar e se um dia realmente volta, ainda que seja bem velha. Aline já se levantou e arrasta a mala pela escada abaixo. [...]" (p. 89-91)
Onde encontrar o livro: Clique aqui para comprar Você me espera para morrer? de Maria Fernanda Elias Maglio
Comentários